Nunca tinha passado pela cabeça da agente comunitária de saúde Vandete Freitas de Barros Galvão, 51 anos, contratar um arquiteto para fazer a reforma da casa onde mora na comunidade de Entra Apulso, em Boa Viagem, bairro da Zona Sul do Recife. O serviço, certamente, seria caro e bem longe da realidade de quem vive numa Zona de Interesse Social (Zeis). Mas quem disse que todo projeto de arquitetura precisa custar muito? Há, no Grande Recife, grupos que estão popularizando a atividade e se aproximando de áreas onde arquitetura, até bem pouco tempo, era considerada coisa de novela.
Um deles, criado em outubro de 2018, atua na comunidade de Entra Apulso e está desenvolvendo a arte de criar espaços organizados com poucos recursos. “O impulso de todo arquiteto é apresentar o projeto ideal para o cliente, nós estamos praticando a arquitetura do essencial, fazendo o máximo do básico para que as pessoas possam viver melhor”, declara o arquiteto Antonio Lucio Neto, fundador da empresa Arquitetura Faz Bem e responsável pela reforma na residência de Vandete Freitas.
“Eu morava num galpão, agora eu tenho uma casa, eles fizeram um milagre aqui”, ressalta a agente comunitária de saúde ao informar que a edificação tinha apenas uma parede interna que separava a moradia de outra área usada como depósito. Na solução encontrada pelos arquitetos, o imóvel de dois vãos ficou com ambientes definidos para sala e cozinha, banheiro social, quartinho para tralha e três quartos de dormir – um para Vandete Freitas e o marido, com suíte e closet; um para o filho do casal e outro para a sogra dela.
Vandete Freitas de Barros Galvão (Foto: Leo Motta/JC Imagem)
Pequenas e simples, em função dos recursos disponíveis pela família, as intervenções tiveram rebatimento no dia a dia da casa. “A gente não sentava (à mesa) na hora das refeições, era cada um com seu prato em um canto diferente, agora a mesa deixou de ser depósito e está sempre livre para o café, almoço e jantar”, diz ela, que inaugurou a ação do Arquitetura Faz Bem na comunidade. No momento, a empresa está com dez propostas em andamento na Zeis Entra Apulso, sendo cinco projetos com custo zero para o morador.
O grupo, informa Antonio Neto, está construindo parcerias para levar adiante o projeto da casa dos não pagantes, famílias que vivem em habitações insalubres, identificadas por agentes de saúde. “Será uma maravilha, toda mãe quer uma casa melhor para os filhos, sempre sonhei com isso, mas nunca sobrou dinheiro”, relata Maria José da Silva, 44. Ela vive com o marido e cinco filhos num imóvel de tábua de 37 metros quadrados.
Maria José da Silva (Foto: Leo Motta/JC Imagem)
A nova casa, de tijolos, terá dois quartos, jardim interno para aumentar a iluminação e ventilação natural, sala, cozinha e banheiro. “Oferecemos o serviço completo, do projeto à obra acabada. No caso dos pagantes, nos adequamos ao valor do orçamento, sem adicionais no decorrer dos trabalhos”, declara Antonio Neto. Ele tem o apoio de seis colaboradores e parceria com 25 escritórios de arquitetura, que doam materiais descartados de obras.
Portas, balcões, armários e outras peças novas retiradas de imóveis reformados pelos escritórios parceiros são reaproveitados nos projetos de Entra Apulso. “Temos um braço de sustentabilidade ambiental”, comenta Antonio Neto. “A comunidade está descobrindo que a arquitetura é acessível, estamos ajudando e nos sustentando desse trabalho”, afirmam Thiago Brennand e Rafhaella Melo, estudantes de arquitetura e voluntários da empresa.
Todos os projetos de melhoria das habitações incorporam as sugestões dos moradores. Mesmo quando eles pedem que o banheiro fique do lado de fora da residência, como aconteceu em Entra Apulso, porque o sanitário é compartilhado por duas casas vizinhas ocupadas por famílias com grau de parentesco. “A solução ideal na nossa visão pode não ser a ideal para eles”, pondera o arquiteto. O banheiro atual é aberto. Com a reforma, terá duas portas, com acessos distintos para cada uma das moradias.
Graduado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2009, Antonio Neto trabalhou em escritório de arquitetura no início da carreira e avisa que não tem intenção de doutrinar ninguém com essa iniciativa. “Apenas estou mostrando que há outros caminhos além da arquitetura direcionada à classe média alta”, afirma.
O arquiteto mora perto de Entra Apulso, conhece a comunidade e na conversa com moradores percebeu o quanto eles se angustiavam com as obras inacabadas nas residências. “Eles começavam a intervenção e no meio do caminho o pedreiro pedia para comprar mais material, como não havia mais dinheiro, o serviço parava”, observa.
Aline Marques (Foto: Leo Motta/JC Imagem)
“Minha mãe perguntou se eu estava louca quando eu disse que tinha chamado um arquiteto para fazer a reforma da casa”, comenta a auxiliar de serviços gerais Aline Marques, 37, que pretende dividir a edificação para fazer dois imóveis, um para ela e outro para a mãe. “A casa de Vandete ficou como um modelo para a gente”, diz Aline.