O Natal é a data mais simbólica e importante na Venezuela. A tradicional “Nochebuena” é celebrada em família e em casa. Ambas coisas distantes dos cerca de 400 venezuelanos que deixaram o seu país para fugir da grave crise e se estabeleceram em Pernambuco. Eles se apegam ao significado de nascimento da data para manter viva a esperança de um renascimento no Estado. Aqui tentam preservar os costumes típicos da celebração na culinária, música e presentes para quem sabe ganhar, de verdade, uma noite feliz.
Em Pernambuco, os refugiados buscam mais que um abrigo. Um lar de verdade. Cada família tem seu caminho de dor e superação para se fixar aqui. O Jornal do Commercio (JC) acompanhou a história de quatro para este natal: a que teve um filho assassinado por engano, a que pede dinheiro nas ruas para sobreviver, a que caminhou 215 quilômetros para chegar ao Brasil e a que conquistou um emprego e reconhecimento. Quatro trajetórias distintas com um destino em vista e em comum: se sentir em casa longe dela.
A chamada “Venezuela Pernambucana” começou a se formar no dia 3 de julho do ano passado quandos os primeiros aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) começaram a pousar no Recife com os venezuelanos vindos de Boa Vista, capital de Roraima, em um processo de interiorização coordenado pelo governo federal com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ), 265 venezuelanos já foram trazidos em 10 voos da FAB e se encontram acolhidos em três instituições: Aldeias Infantis, em Igarassu; Cáritas, no Recife, e Ação Missionária para Áreas Inóspitas (AMAI), em Carpina. Fora os que chegaram de forma espontânea e se estabeleceram no Estado, compondo um grupo estimado de quase 150 pessoas.
Uma população que cresce na mesma proporção exponencial em que necessita dos serviços mais básicos. Sobretudo os que vieram por conta própria e recorrem à mendicância para sobreviver aqui. O secretário executivo de Assistência Social de Pernambuco, Joelson Rodrigues, garante que os venezuelanos estão sendo acompanhados periodicamente para identificar e sanar as suas necessidades, junto com as prefeituras. “Nós estamos dialogando com os municípios pra tentar superar todas as barreiras, como língua e documentação, para garantir todos os direitos dos venezuelanos. Os que vieram pelos planos de interiorização todos já estão com nomes no cadastro único da assistência social, com Bolsa Família, crianças nas escolas e atendimento na saúde. Os outros demandam mais de políticas públicas e estamos tentando viabilizar isso, inclusive moradia”, afirmou o secretário.
Há mais de 15 anos, a Venezuela vem enfrentando uma crise que não é apenas econômica, mas também política e social. Ainda governado por Nicolás Maduro, o país se encontra em um grave colapso que faz com que milhares de venezuelanos fujam para outros países. Difícilmente os que vieram para Pernambuco terão uma Nochebuena como era antigamente no seu país, antes do desastroso regime de Nícolas Maduro. Ao menos aqui terão o direito de sonhar com uma noite boa e, principalmente, dias melhores.
Natal significa vida. Mas para uma família de venezuelanos a data este ano será marcada pelo contrário. Chegar a este dia com um filho a menos é motivo de uma tristeza a mais para Yakari Mercedes, 36 anos. No dia 10 do mês passado, seu filho, o estudante Juan Malave, 15 anos foi assassinado com dois tiros em um beco de Igarassu, município do Grande Recife. Segundo a polícia, por engano, quando ia buscar doações. Uma dor difícil de encarar. Ainda mais nesta celebração, que seria a primeira em Pernambuco.
Devido à crise em seu país, Yacari abandonou a cidade de El Tigre com os três filhos (o que foi morto; Endri, 11 anos; e Carlos, 18) e chegou a Pernambuco no dia 2 de fevereiro deste ano, em um voo custeado pela Organização das Nações Unidas, que desenvolve um projeto de reencontro familiar. Ela conseguiu emprego como cuidadora de idoso e alugou uma casa para morar em Igarassu.
De acordo com a Polícia Civil, Juan foi morto com dois tiros (um nas costas e outro na cabeça). Outros dois venezuelanos ficaram feridos em uma ação de criminosos que tinham outro alvo. “Ele foi morto inocentemente, não teve culpa de nada. Eu não deixei o meu país pra perder um filho no Brasil, ainda mais desta forma tão cruel”, lamentou Yakari. Durante o cortejo, o caixão do garoto foi colocado no chão e os amigos jogaram bola ao lado, seguindo uma tradição da Venezuela de homenagear o morto. “Ele amava futebol e sonhava em ser jogador, uma pena que teve os planos roubados”, queixou-se Yakari, que ainda pensar em cremá-lo para um dia levar as cinzas de volta a seu país. O autor dos disparos foi preso pela polícia no fim de novembro.
Natal é família e Yakari fez grande esforço para reunir a sua. Antes da morte do filho, conseguiu através de doações e programas da ONU, trazer para Igarassu 20 parentes, entre eles mãe, irmã, primas, maridos e filhos. Depois do assassinato de Juan, ficou desempregada e no fim do mês passado todos seriam despejados. Uma matéria do Jornal do Commmercio ajudou a família a receber doações para se manter por mais alguns dias. “Muitas pessoas entraram em contato. Algumas me ajudaram a pagar o aluguel de uma nova casa e outras arranjaram emprego para o esposo da minha prima e seu filho mais velho”, contou.
Feliz com a chegada dos parentes e triste com a partida do filho, Yakari usa a música para reduzir o sofrimento. No dia da entrevista, havia em sua casa o som da gaita, eram canções tradicionais do natal venezuelano. “As famílias todas se reúnem no natal para escutar as gaitas que nos trazem uma mensagem positiva. Dizem para esquecer o que de ruim aconteceu no ano que passou e acreditar que o próximo será melhor”, explicou Yakari. À medida que o olhar se perdia, o rosto ganhava lágrimas. “É impossível ter um Natal feliz. Não tenho o que celebrar com a desgraça do meu filho”, cravou Yakari, ciente do tamanho da falta que data alguma pode preencher. Quem puder colaborar, a família ainda precisa de ajuda.
Doações: (81) 98175-9887 ou depósito na Caixa Econômica Federal: Agência 1028/Conta-poupança: 00098533033-0
Um trabalho é o principal pedido
Quem já andou 215 quilômetros com esposa e cinco filhos pequenos para chegar ao Brasil não reclama de qualquer caminhada. Mas o trajeto para tornar-se independente em Pernambuco tem sido penoso. A marcha pela vida esbarra em um passo: a conquista de um emprego. Maudis Arsola, 33 anos, vive com a família há um ano e quatro meses no alojamento da ONG Aldeias Infantis S.O.S. Brasil, em Igarassu, município do Grande Recife. Neste período fez bicos e teve um emprego temporário como auxiliar de produção que se encerrou no último dia 12. No segundo Natal em Pernambuco, reforça o pedido do ano passado: trabalho.
Encararam uma jornada quase desumana depois de ver todos os direitos negados na Venezuela. Em março de 2018, deixaram Ciudad Bolívar e foram de ônibus até Pacaraima, em Roraima. Como não tinham mais dinheiro, seguiram a pé até a capital Boa Vista, a 215 quilômetros. Três dias de caminhada com os cinco filhos (Daniela, 6; Emelys, 10; Moisés, 12; Mileydis, 14 e Jesus, 16) e a esposa Milagros Salazar, 30. De lá vieram para Pernambuco no dia 6 de julho do mesmo ano e desde então estão buscam autonomia financeira para deixar o abrigo.
Na Venezuela, Maudis trabalhava como motorista de caminhão de lixo, mas aqui fez de tudo, de ajudante de pedreiro a padeiro. A esperança veio quando foi chamado pela fábrica de produtos de limpeza Unilever, mas o contrato acabou. “Queria pedir de coração a ajuda dos pernambucanos. Eu sou um pai de família com seis bocas pra alimentar. Aceito qualquer trabalho. Meu sonho é conseguir um terreno para construir uma casa e sair do abrigo”, disse Maudis.
Mas a esperança está na família, representada até no nome do filho mais velho: Jesus, que ajuda os pais na procura por trabalho e cuida dos irmãos. Na celebração do nascimento de Cristo, o primogênito e os outros filhos fizeram um pedido aos pais. “Eles sabem que precisamos de tudo, de comida a dinheiro, mas pediram pra gente patins. Há muito tempo desejam isso. Se alguém pudesse doar, o Natal deles seria mais feliz”, contou Milagros, a mãe.
Doações: Telefone: (81) 99242.5352 Banco Santander: Agência: 4025 Conta-corrente: 010617585
Necessidades expostas nas ruas do Centro
As necessidades dos venezuelanos residem em dois endereços, no bairro da Boa Vista, Centro do Recife. Um imóvel na Rua da Glória e outro na Rua de Santa Cruz. Juntos abrigam quase 80 pessoas, sendo maioria crianças. Atravessaram a fronteira e passaram por várias cidades brasileiras, tendo se estabelecido na capital pernambucana desde o começo de outubro. Para sobreviver, pedem assistência ao governo e ajuda à população, em um apelo mais dramático no período natalino.
Fugindo da crise, as famílias, de origem indígena Warao, saíram da cidade de Tucupita há cerca de nove meses, viajando de barco e ônibus, com passagem por capitais como Manaus, Belém, São Luís e Natal. Ficaram no Recife e tentam se manter pedindo doações nas ruas. “Fizemos placas e ficamos nos semáforos pedindo esmola. As pessoas de bom coração nos ajudam e dão comida”, disse Santo Tovan.
De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude do Estado, o imóvel da Rua da Glória é particular e teve o aluguel pago temporariamente pela Prefeitura do Recife e o da Rua de Santa Cruz pertence à Arquidiocese de Recife e Olinda. Ambos terão que ser desocupados. O poder público estadual e municipal está discutindo novo local para abrigar as famílias e providenciando a retirada de documentos.
Quem passa na frente das casas não fica indiferente às necessidades das famílias, escancaradas na calçada. Idosos sentados em meio a lixo, crianças brincando com o que encontram na rua e adultos pedindo esmolas com placas. “Para esta Nochebuena necessitamos de comida, roupas, tudo o que quiserem nos dar. Temos esperança de ter uma noite feliz aqui”, disse Santo. Para ajudá-los é só chegar a um desses endereços.
O sabor de estar empregado
O sabor de um Natal feliz. O ajudante de cozinha Eduardo Medrano, 39 anos, conhece bem isso. Depois de digerir muitas dificuldades agora pode degustar a data com a família em boas condições. A receita? Trabalho! Eduardo pode orgulhar-se de ser um dos poucos venezuelanos que conquistaram um emprego e já provaram o gosto de ser reconhecido. Chegou a Pernambuco em maio do ano passado e menos de um mês depois já estava trabalhando em uma padaria gourmet no município de Igarassu, na qual continua atuando. É qualificado e, principalmente, apaixonado pelo que faz.
Nasceu na cidade de Tucupita, onde herdou o amor pela cozinha. “Durante muito tempo fui filho único e gostava de ajudar minha mãe no preparo dos alimentos em casa. Fui crescendo, me interessando mais, fiz alguns cursos e comecei a trabalhar em lanchonetes e restaurantes”, contou. Mas as lembranças da Venezuela se tornaram amargas quando a crise se instalou no país. “Muitas pessoas começaram a passar fome. Pra se ter uma noção, quem ganhava um salário mínimo só tinha dinheiro para comer até cinco dias. Um quilo de arroz, por exemplo, era vendido por um preço muito maior do que 20 reais”, recordou.
Em junho deste ano, a inflação na Venezuela ultrapassou mais de 1 milhão por cento, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em outubro, governo anunciou um aumento de 375% no salário mínimo na Venezuela, que passou de 40 mil para 150 mil bolívares por mês, o que equivale a passar de US$ 2,02 para US$ 7,60.
Por tudo isso, Eduardo veio para o Brasil com esposa e os filhos Izaias, 10, Laura, 4, e Claudia, 4. Orgulhoso, hoje ele sustenta a família fazendo o que sabe e gosta. “Sou muito grato primeiramente a Deus e depois à empresa por ter me dado essa oportunidade e confiado no meu trabalho. Se estou aqui até hoje é porque acho que as coisas estão dando certo”, registrou Eduardo.
Considerado cozinheiro de mão cheia, Eduardo explicou que a culinária tem um sentido muito forte no natal venezuelano. “Infelizmente agora não, mas antes de o nosso país estar nesta situação, nós podíamos fazer muitos pratos típicos natalinos que representavam a nossa identidade. O principal da nossa ceia de Natal se chama hallaca, uma massa, parecida com o fubá, onde se coloca carne guisada, vegetais e ovos, e depois se envolve em folhas de bananeira”, contou, sonhando com a iguaria no Natal deste ano.