É difícil enumerar o que une as pinturas das artistas Tereza Costa Rêgo, Clara Moreira e Juliana Lapa. Por mais que a idade e suas gerações as distanciem – Tereza, um ícone pernambucano, com seus 90 anos, e Clara e Juliana na casa dos 30 –, suas poéticas convergem em um universo quase infinito de significações. Reuni-las foi a tarefa que o curador Bruno Albertim pôs em prática na exposição Antes do Cio dos Gatos, que está ocupando a galeria Amparo 60.
A subjetividade feminina talvez salte aos olhos como elo principal; todas as obras assumem o figurativismo para conceber corpos de mulheres em protagonismo. Cada qual em diálogo com as particularidades artísticas de suas autoras.
Tereza, por exemplo, explora, dentre outras coisas, o corpo nu. Em sete obras inéditas (no que é sua primeira exposição na Amparo 60), suas pulsões artísticas carregam um sentimento histórico de quebra de amarras. Criada e educada numa família tradicional e aristocrática, segundo Bruno Albertim, Tereza só viria a pintar o seu primeiro nu depois da morte da sua mãe, na década de 80.
“Seu gesto não é individual, é um gesto coletivo, social, uma verdadeira afirmação da mulher num século de negações”, diz Bruno, que mantém uma relação próxima com a pintora, além de ter escrito, no ano passado, sua biografia.
Todo o rastro histórico de Tereza, como mulher e ícone do modernismo, certamente ressoa sobre as obras de Clara e Juliana. Não como um legado estático, a união das três para a exposição foi de admiração mútua e de interlocução.
“Poderia existir uma tendência de encastelar a obra de Tereza em lugar onde ela deveria ocupar por direito. Só que aos 90 anos ela continha caminhando com essa paciência e humildade. Na exposição, as artistas estão em franco diálogo, são trabalhos das três – um espaço compartilhado entre elas. Há reverencia, admiração, mas não há hierarquias”, explica o curador.
Para a mostra, Clara Moreira trouxe suas garças mulheres – aproximando seu figurativismo ao surreal das cores fortes. Seus traços não são estranhos para quem acompanha seus trabalhos com cartazes de cinema; ilustrando filmes de nomes como Kleber Mendonça Filho (o de Bacurau, por exemplo), André Novais Oliveira e Pedro Diógenes. Os desenhos excedem o campo semântico das obras, usufruindo de uma liberdade criativa sem limitações – o mesmo processo que a artista encarnou para a exposição.
“Eu trago a garça como essa mulher-bicho, o que dialoga também com a obra de Tereza. Essa relação com o corpo da mulher; mulheres desenhando mulheres que é algo muito forte na obra das três. Mais para além disso, tinha um interesse por um certo depois que esses corpos representavam. Eles anunciavam algo que viria em seguida. Como se essas imagens fossem um recorte num tempo anterior ao acontecimento, na iminência”, explica Clara.
Juliana Lapa, por sua vez, aproxima suas pinturas da natureza. Suas personagens remetem à fecundidade das florestas, de uma mulher vegetal em um processo de gestação de si ou de um outro ser. A sua poética, conta a artista, encontra para além do corpo, outras formas de expressão.
“Houve uma quebra de clichê antigo de que a gente fala só do universo feminino. Como um lugar de natureza humana, também estamos falando da sociedade. Esses corpos representam essa sociedade que a gente existe enquanto artista mulher. A gente se encontra nesse lugar político, de rasgar e quebrar isso”, diz.
É a partir disso que a curadoria de Bruno Albertim pincela sobre as várias intersecções entre as pinturas. O gesto, como uma quebra de paradigmas na terceira arte, é uma das principais entre elas.
“É uma mitologia que não explora só o arquétipo. Clara explora a iminência do voo, do movimento. Juliana a fecundidade, a gestação de um ser construindo o outro. E Tereza o tempo todo está falando de liberdade; a nudez é um gesto de libertação para ela”, explica Bruno.
A montagem das peças propõe uma elevação, como explicado, sem nenhuma hierarquia. As mulheres dispostas nas pinturas se misturarão pela galeria como protagonistas de cada quadro. Quase como se o célebre curta Dyketactics (1974), de Barbara Hammer (falecida este ano), se transformasse numa exposição de arte. Não há antítese patriarcal entre os corpos presentes – que se congregam, completam e conversam sobre apenas uma máxima: a pulsão artística de cada uma das pintoras.