No Festival de Cannes, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, mostra um Recife transfigurado

Filme acompanha a batalha de uma jornalista contra uma construtora
Ernesto Barros
Publicado em 17/05/2016 às 9:59
Filme acompanha a batalha de uma jornalista contra uma construtora Foto: Divulgação


 

 

Aquarius, o novo filme de Kleber Mendonça Filho, que estreou nesta terça-feira (17-5) no Festival de Cannes, é um dos mais fortes e dilacerados retratos sociais da história do cinema brasileiro. O filme segue, em estilo, tom e ferocidade, a mesma disposição que o cineasta apresentou em O Som ao Redor ao demolir as aparências de civilidade com que os poderosos tratam aqueles que não se sujeitam aos seis caprichos.

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Os dois filmes são gêmeos e dificilmente poderão ser vistos separadamente daqui para a frente. Se em O Som ao Redor a visão de Kleber apontava para as raízes da construção desse poder, através da hereditariedade, em Aquarius ele adentra uma realidade de quem mora no Recife de hoje.  Agora, em clave ainda mais direta, ele mostra como se operou essa cruel transfiguração da cidade, tantofísica quanto moralmente, que não consegue espelhar em quase nada o que foi no passado.

Na abertura de Aquarius, Kleber usou fotos da Avenida Boa Viagem tiradas entre os anos 1950-1970 pelo fotógrafo Alcir Lacerda. Desta vez, elas abrem para o espectador a paisagem sentimental da jornalista aposentada Clara, que mora num aprazível prédio de frente para o mar, no bairro do Pina. Em três capítulos, Kleber acompanha duas fases da vida de Clara: em 1980, quando vence uma doença, ela é interpretada por Barbara Colen, com cabelo cortado à Elis Regina; nos dias de hoje, já sexagenária e aposentada da crítica musical, a personagem é vivida por Sonia Braga (genial em todas as cenas, muitas de grande coragem). 

A canção Hoje, cantada por Taiguara, abre e fecha o filme. Alguns dos seus versos –“Trago em meu corpo as marcas do meu, meu desespero, a vida num momento...” – traduzem a garra de Clara. E todo o filme, afora o primeiro capítulo, é sobre a batalha que ela vai travar para manter sua integridade e a vida que ela escolheu viver, entre seus discos, livros e banhos de amar. Tudo o que ela acredita está simbolizado no apartamento em que vive no edifício Aquarius, um pequeno prédio que a Construtora Bonfim, por meio de um de seus diretores, Diego (Humberto Carrão), resolve botar a baixo para transformar em espigão, um projeto pessoal que ele elaborou depois de “estudar business nos Estados Unidos”.

Desenvolvido com paciência, dando tempo para que entendemos as motivações de Clara, Kleber faz de sua personagem uma super-heroína que não desiste de lutar contra essa violência e o jogo sujo em que é vítima. E o cineasta não alivia em mostrar como as ameaças atingem Clara. Por ser uma narrativa centrada quase numa única persoanagem, ao contrário de O Som ao Redor, mais coral, Aquarius é intimista, mas não deixa de projetar uma sombra de indignação que visa o coletivo.

Embora mostre a crise de valores e o desrespeito em que Clara é vítima, Aquarius é uma ode ao Recife. Desta vez, ao acompanhar a personagem, Kleber leva o espectador para recantos afetivos da cidade, além de outros da cidade encandeada pela luz do mar. Como Clara é uma crítica de música, o filme tem uma trilha sonora muito especial, que faz parte significativa da história dela, com canções de Taiguara, Gil, Caetano, Roberto Carlos, Ave Sangria e muitos outras. Aquarius é um grande filme, que só agora está nascendo para o público e que ainda vai ser muito comentado.

O repórter viajou numa parceria do JC com o Institut Français e a AESo-Barros Melo.

 

 

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