Regina é uma jovem publicitária. Ela gosta de canecas divertidas, camisetas de banda e, vez ou outra, de umas “piras erradas”. Frequenta cafés, consome graphic novels autorais e come macarrão instantâneo mais do que o usual. Talvez Regina seja um estereótipo. Mas o que importa nesta sátira criada pelo carioca radicado em São Paulo Felipe Parucci para sua HQ Já Era é que ela está de saco cheio. Do marasmo, da mesmice, da rotina de trabalhar muito e ganhar pouco para fazer a roda do capitalismo girar a seu desfavor. A vida entediante e decepcionante de Regina, entretanto, não tem absolutamente nada a ver com o resultado deste trabalho, que fazendo uma crítica ao consumo desenfreado com muita ironia e humor ácido empolga e instiga reflexões do início ao fim das suas 352 páginas.
Dividido em três partes (com seis interlúdios), o quadrinho mostra como a jovem pouco a pouco vai pegando ranço não só do seu trampo como da humanidade tomada pela discórdia. Empurrando sua insatisfação com a barriga, é só depois de passar por dois episódios frustrantes em um mesmo dia que ela decide arrumar as malas e embarcar (literalmente) numa jornada pessoal rumo ao autoconhecimento. Mas mal sabia Regina que levantando âncora e zarpando em busca de novos ares estaria afundando aquele barco em um oceano de insanidade — com direito a naves espaciais, gatos alienígenas e um alfabeto “chânico” (o qual, na orelha do livro, Felipe admite ter criado com 12 anos para escrever os nomes das meninas que gostava nos cadernos da escola). É que em alto-mar ela acaba sendo abduzida pelo gato Caetano e pela mana Mina, dois astronautas da civilização “mano-gatana”, que atualmente está no ano 257 zilhões e alguma coisa (sic) – marco contado a partir do evento mais importante da sua história: a invenção do dinheiro.
“O que eu queria passar criando essas ‘raças’ era questionar a ideia de evolução. Por isso eu retrato uma civilização que ‘evoluiu’ milhares de anos mas que continua cometendo os mesmos erros de qualquer civilização racional do universo”, explicou Felipe, afirmando ser bastante pessimista em relação à sociedade e em como ela “evolui”. “Acho que no fundo existe em mim uma vontade de que a humanidade prove que minhas ideias estão erradas”, brincou o quadrinista que narra pela segunda vez uma história sobre escapismo e fim dos tempos. A diferença é que em sua HQ de estreia, a aclamada Apocalipse, Por Favor (2015, independente) foi dada à luz a um cara que foge da realidade de forma inconsciente, enquanto Regina, desperta, toma a decisão de jogar tudo para o alto, fugir num barco e se isolar do mundo.
Outra distinção entre as duas obras de Felipe é que na novela gráfica antecessora ele era responsável por todo o processo de produção. Em Já Era, por sua vez, ele assinou o roteiro, arte e diagramação/letreiramento, mas deixou a revisão, edição, distribuição e vendas a cargo da editora Lote 42. Essa também é a primeira vez em que ele finaliza seu trabalho usando o aplicativo Procreate num Ipad Pro, o que normalmente fazia manuseando o Photoshop num PC, com o auxílio de uma mesa digitalizadora. Isso fez com que seus desenhos ganhassem uma identidade diferente. “A portabilidade e a praticidade de desenhar direto na tela do Ipad foi um upgrade bem legal pro meu método”, comentou Felipe, ressaltando que apesar desse aspecto digital, as páginas sempre nascem de um esboço a lápis.
Mesmo sendo uma história longa, Já Era nunca fica cansativa. Isso porque o dinamismo do traço (ampliado pelas expressões faciais) e enquadramentos mantém a leitura fluida, fazendo com que o livro possa ser lido em poucas horas. Ademais, o domínio de “claro-escuro” do autor também contribui para o bom ritmo da trama, que se torna mais introspectiva ou não de acordo com a variação uniforme de tonalidades entre preto e branco na página. Ou seja, os quadros com fundos negros pedem que o leitor esqueça um pouco o entorno e foque na nuance dramática, na carga emocional da personagem.
Repleta de “easter eggs” e particularidades “zoeiras”, algumas escancaradas e outras mais sutis, a HQ faz uma mistura balanceada entre humor, drama, aventura e fantasia. Entre as sutilezas mais marcantes, a autocrítica. A percepção de que a protagonista não está imune ao desdém com o qual encara o mundo. Fazendo um paradoxo gramatical no seu próprio título – o “já” é passado – Já Era é divertida, criativa e traz ótimas sacadas e pertinentes críticas sociais. Viabilizada por meio de financiamento coletivo, a HQ está disponível por R$ 60 em lojas especializadas e no site da Banca Tatuí, que é vinculada à editora Lote 42.