'A Metamorfose', de Kafka, com ilustrações de Lourenço Mutarelli

A nova edição da obra, feita pela Antofágica, ainda conta com tradução de Petê Rissatti
Diogo Guedes
Publicado em 25/06/2019 às 10:10
A nova edição da obra, feita pela Antofágica, ainda conta com tradução de Petê Rissatti Foto: Ilustração: Lourenço Mutarelli/Divulgação


Talvez este seja um dos começos mais célebres de literatura mundial, com uma frase que, sozinha, estabelece a trama e o tom do que virá no restante da narrativa: “Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”. Poucas vezes a ideia de normalidade foi apresentada e demolida com tamanha rapidez e perícia como nesse início de A Metamorfose, do escritor tcheco Franz Kafka. Afinal, logo na primeira linha o leitor já sabe que está diante do nosso mundo, o das pessoas que precisam trabalhar mesmo doentes e dos filhos que pagam as dívidas dos pais, mas que esse mundo (e todos que os habitam) também pode ser monstruoso em si.

Não são poucas as edições da novela de Kafka no Brasil, por motivos óbvios. Como breve obra-prima que é, a narrativa é presença  obrigatória em quase qualquer catálogo e inesgotável em sua possibilidade de releituras. Para a Antofágica, editora que nasceu neste ano voltada para publicar títulos clássicos com diálogos com o contemporâneo, seria uma escolha natural começar sua trajetória com A Metamorfose.

A bela edição conta com uma nova tradução, elaborada por Petê Rissatti direto do alemão, mas também com um grande chamariz: as ilustrações feitas pelo escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli. Responsável por HQs icônicas nos anos 1980 e 1990, incômodas e estranhas como elementos da ficção kafkiana, o artista talvez seja um nome tão perfeito para reimaginar a novela que parece surreal que o encontro entre os dois não tenha acontecido antes. O universo de Mutarelli não é o mesmo de Kafka, mas é bizarramente aparentado a ele: é essa conexão inexata que parece ser ainda mais produtiva.

O traço de Mutarelli parece sempre disposto mostrar as pessoas como figuras em mutação, que abrigam dentro de si o monstruoso. O quadrinista trabalha com a imagem da metamorfose como algo que irrompe de dentro de si, em um diálogo que não necessariamente espelha a narrativa, e sim a interpreta.

No volume, Mutarelli conta que a leitura de Kafka “mudou tudo” em sua vida. “A Metamorfose foi o maior impacto que a literatura já exercera em mim. Dostoievski me trouxe o peso, a densidade e a complexidade psicológica da realidade. Kafka me trouxe algo ainda mais profundo. Algo que tocou o lado mais obscuro e metafísico em mim, e que fez vibrar os fios de meu mundo onírico. A Metamorfose despertou uma força ancestral em meu ser. Algo maior do que eu. Desde então, esse passou a ser para mim o livro mais simbólico de todos”, revela.

A narrativa traz um caixeiro-viajante que acorda como um “monstruoso inseto” e, apesar da mudança, se preocupa antes de tudo em não assustar os pais e tentar ir ao trabalho para continuar a pagar as dívidas da família. “O que aconteceria se ele alegasse que estava doente? Seria deveras embaraçoso e suspeito, pois Gregor nunca tinha estado doente durante seus cinco anos de serviço”, escreve Kafka. Quando não pode mais esconder a sua “indisposição”, é tratado como um fardo grotesco pelos familiares, que não sabem como lidar com aquilo que um dia já foi seu filho.

Para Mutarelli, dois elementos nessa narrativa de metamorfose são especificamente perturbadores. Primeiro, Gregor Samsa vira uma criatura indesejável, que desperta asco, ao contrário de algumas fábulas. Além disso, sua transformação não é temporária ou reversível: é permanente, como uma maldição ou um destino.

"ESPERANÇA, MAS NÃO PARA NÓS"

Além do texto de Mutarelli, a edição conta com comentários do tradutor Petê Rissatti e do professor Flávio Ricardo Vassoler. Rissatti ressalta esse incômodo visto pelo ilustrador. “Toda mudança é perturbadora, sempre causa espécie, mas a metamorfose de Gregor Samsa aniquila qualquer expectativa de uma vida normal”, aponta. Além disso, lembra uma poderosa frase de Kafka sobre a tensão da sua criação, escrita em uma carta para o amigo Max Brod: “A impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever de outro modo. Também se poderia acrescentar uma quarta impossibilidade, a impossibilidade de escrever”.

Vassoler também traz uma comentário agudo e breve sobre A Metamorfose. “É como se, em Kafka, as personagens sempre buscassem alguém diante de quem se ajoelhar; é como se, ao lado das leituras políticas e surreais, Kafka nos sussurrasse que o medo da liberdade é parte fundamental do que somos. Eis, talvez, o mote de um dos mais contraditórios aforismos de Franz Kafka: ‘Há esperança, mas não para nós’”, finaliza.

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