Plano Real provocou mudanças estruturais na máquina pública

Privatizações e ajuste fiscal e de gestão passaram a fazer parte da agenda do País
Giovanni Sandes
Publicado em 01/07/2014 às 9:45
Privatizações e ajuste fiscal e de gestão passaram a fazer parte da agenda do País Foto: Heudes Regis/JC Imagem


Para combater a inflação, uma das principais medidas do Plano Real era reduzir os gastos públicos. As medidas para isso viraram um tabu durante anos, no Brasil, por questões políticas, embora tenham sido retomadas por governos de todos os partidos: fazer do setor privado parceiro nos serviços públicos. O Plano Real fez mais que privatizar. Reformou a lógica de atuação do Estado, mudando o foco de dentro para fora da máquina pública, para os resultados no atendimento a cidadãos e empresas. Em Pernambuco, esta mudança moldou o Porto Digital, um dos principais parques de tecnologia do País.

Não à toa as reformas do plano são lembradas pelas privatizações. Elas compõem a face mais visível das mudanças. É o caso da telefonia, antes um monopólio estatal. O consumidor esperava um ano por uma linha de telefone que chegava a custar US$ 2 mil e era até objeto de declaração no Imposto de Renda. Não havia alternativa. Hoje leva-se um telefone na hora e pode-se optar entre várias empresas. Por outro lado, além de escândalos, as privatizações passaram a ser associadas a tarifas altas e serviços ruins. O Judiciário hoje é entupido de casos sobre telefonia e energia, outro setor privatizado.

Mas os benefícios da desestatização, salvo posições ideologicamente inflexíveis, são reconhecidos hoje por governos de qualquer partido. Não é mais possível manter um modelo que até os anos 80 provocou falta de dinheiro para o poder público, por causa de, entre outros fatores, impor custos demais ao Estado brasileiro: estradas, postes, usinas, bancos, mineradoras, companhias aéreas. Fernando Collor veio e radicalizou. Literalmente desmontou o País ao vender estatais e demitir pessoal sem planejamento. O Plano Real mudou isso. Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, ele deu origem ao Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Pdrae), que fez privatizações, concessões e introduziu figuras novas, as organizações sociais (OS), formas de melhorar a qualidade de serviços. O Estado manteria atribuições estratégicas, como meio ambiente e segurança, enquanto se fortaleceria para planejar, coordenar e regular a atividade privada, com metas e indicadores pré-definidos.

“A desestatização definiu áreas de responsabilidade do Estado que teriam concessões, como telefonia, rodovias, ferrovias e energia, e as que não eram próprias do Estado, como a mineração”, explica Francisco Queiroz, coordenador da especialização em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Já dentro da gestão pública vieram foco nos resultados e a ampliação das formas de terceirização”, comenta Queiroz. “As medidas formavam um conjunto com um aspecto mais de política de Estado do que de governo”, complementa Sérgio Birchal, doutor em história econômica e pós-doutor pela Escola de Ciência Política e Econômica de Londres.

O histórico leilão da telefonia, em 29 de julho de 1998, é fundamental nessa trajetória. Mas apesar do impacto profundo no setor, é parte de um quadro maior, da chamada reforma gerencial: o foco nos resultados para cidadãos e empresas. Dois meses antes do leilão, por exemplo, veio a lei das organizações sociais, entidades também criadas para assumir serviços públicos, mas só os que não são responsabilidade exclusiva do Estado, como saúde, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Só pode virar OS a associação ou fundação privada sem fins lucrativos que cumpra uma lista de requisitos, para, por meio de um contrato de gestão, receber dinheiro público e atuar com indicadores e metas. Com esse arranjo, em 2000, no governo Jarbas Vasconcelos surgiu o Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD).

Seguindo a lei, o Porto de Digital tem gestão privada, orientada por um conselho que reúne poder público, empresas e especialistas. Assim, teve flexibilidade e capacidade técnica para batalhar pela infraestrutura física do Bairro do Recife, hoje dotado de oito quilômetros de fibra ótica, e induzir um ambiente de negócios entre os mais inovadores do País. As primeiras três empresas viraram 230, com os gigantes Microsoft, LG, IBM e Accenture convivendo com pequenos e médios negócios. Eles somam R$ 1 bilhão em faturamento anual e 7 mil empregos. O planejamento, com horizonte de 10 anos, prevê 20 mil vagas até 2022. “A lei da OS resultou do esgotamento da gestão autárquica e trouxe a possibilidade de implantação ágil de políticas públicas. Sem ela não teríamos capacidade de planejar a longo prazo ou ter autonomia gerencial. Seríamos uma repartição. Sem ela não haveria Porto Digital”, diz Francisco Saboya, diretor-presidente do NGPD.

Em vez de aprimoradas, por razões políticas essas ferramentas ficaram anos sem uso, até a volta das concessões de rodovias e aeroportos, bem como OS na saúde. “Precisamos despolitizar e tornar mais eficientes privatizações e concessões. Teríamos maiores ganhos com uma reforma gerencial mais profunda. Mas é difícil, porque passa por uma reforma política”, comenta Sérgio Birchal. Um dos aspectos é o excesso de cargos comissionados em todas as gestões. “O Brasil só vai melhorar quando tiver uma administração mais técnica. Quais os melhores quadros da União? São a Polícia Federal, Receita, diplomacia e as Justiças federais”, explica Francisco Queiroz.

E o País já precisa de novas soluções. “No Brasil se parte do pressuposto que investimento traz inovação. Não é assim. Coreia do Sul, China, Japão estruturaram políticas de inovação. Temos que criar essa cultura como política”, afirma. É o potencial que o Porto Digital simboliza: a parceria da gestão pública em vários governos com empresas privadas em uma estrutura leve e com uma política de inovação.

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