Paulo Barbosa era o melhor informante do que acontecia no Bairro do Recife. Auxiliar de prático, ele sabia de tudo que se passava no Porto do Recife. Das confusões da zona do baixo meretrício aos assuntos de importação e exportação. Salvava a pauta de muito chefe de reportagem do JC e do DP, na década de 80, com uma recomendação pelo telefone (fixo) que virou referência: “Esse assunto merece uma reportagem jornalística com texto e fotos feitos no local”.
Nos tempos das mídias sociais, “reportagem jornalística com texto e fotos feitos no local” deixou de ser atributo da Imprensa profissional para virar “ofício” de qualquer pessoa com um smartphone na mão. De ministro de Estado a passageiro de ônibus passando pelo local do acontecimento.
O problema é quando as pessoas como “ministro de Estado” entendem de usar a informação para, além das imagens, inserir uma narrativa própria sem a curadoria que a Imprensa profissional realiza ao longo de ao menos dois séculos e transforma isso numa ferramenta de ação política que deriva para, literalmente, tudo que a mente humana possa imaginar.
Depois de 25 anos da internet, a dificuldade da Imprensa profissional, ancorada em grandes companhias de jornais impresso, em entender a revolução que estava acontecendo na sua porta, está documentada em milhões de artigos acadêmicos e pelo fechamento de milhares jornais diários.
Mas o fenômeno das redes sociais dentro da Internet só agora começa a ser, de fato, sentido como instrumento de ataque às democracias, e isso não se dá apenas pela possibilidade de o cidadão poder publicar “uma reportagem jornalística com texto, fotos (e vídeo) feitos no local”, em tempo real.
E o apagão do WhatsApp, Instagram e do Facebook nos permite uma nova reflexão sobre isso.
Na onda da explosão das receitas de classe mundial, as chamadas Big-Techs, sediadas nos Estados Unidos, estão vendo que as ferramentas que criaram já não são usadas apenas para juntar pessoas - como romanticamente seus criadores as conceberam. Ou para gerar bilhões em receitas, como os seus gestores financeiros - que os compraram - perceberam.
Elas agora são usadas para atacar o próprio sistema democrático que permitiu seu desenvolvimento. E esse é um lado da questão que está a cada dia mais ameaçador.
Ainda é possível - nas democracias maduras - ter ações de curadoria legal para conter os excessos. Ainda é possível bani-los ou conseguir silenciá-los em nome dos respeitos às liberdades de pensamento que a própria sociedade, ao longo de séculos, consolidou.
Mas esse não é o caso dos serviços abrigados em países governados por lideranças despóticas onde, há muito tempo, a democracia clássica foi para o espaço, e pelo voto universal.
O preocupante dessa disrupção digital não é seu uso pelo cidadão, mas o seu uso pelo Estado e pelos proto-agentes desse mesmo Estado que se abrigam na chamada "liberdade de expressão" para perpetrar negócios criminosos e passarem a atacar as democracias com uso das ferramentas tecnológicas.
- Facebook terá medidas para afastar adolescentes de conteúdo prejudicial
- WhatsApp libera função de denunciar mensagens específicas; saiba como fazer
O uso de conceitos de Deep Web (a internet profunda, em tradução livre), uma área da Internet que fica "escondida" e sem regulamentação, sendo abertamente defendidos por empresas com capacidade de comunicação planetária e sem ter qualquer ponto de ancoragem legal nos demais países, talvez seja o maior desafio das democracias. Inclusive, as mais sólidas, como os Estados Unidos.
Países como o Brasil se tornam alvos desse tipo de ataque pelo potencial que esse tipo de ação organizada nas mídias sociais e aplicativos mensageiros gratuitos podem interferir na própria liberdade de expressão.
Tomando-se dois casos de países que desenvolveram seus próprios sistemas de mídias sociais, a China - com o seu WeChat - e na Rússia - com o seu Telegram.
A ação do Estado forte pode ali perfeitamente interferir nas ações das plataformas quando eles se tornam (se em algum momento se tornarem), ameaças ao Governo. Eles têm mecanismos de vigilância e controle que impede não apenas esses, mas qualquer outra plataforma saia da sua vigilância estatal.
Entretanto, fora desses países, aqui tomados apenas como exemplos, esses mesmos mensageiros estão livres. E esse talvez seja, hoje, o maior desafio das demais nações.
O problema do uso de tecnologias distorcidas de manifestação social é exatamente a impossibilidade de controle dessa manifestação da chamada "liberdade de expressão". Uma vez liberada, como aconteceu nos últimos anos e sem qualquer curadoria, não tem mais como voltar ao ponto de partida.
A questão que se coloca hoje não é mais se esse ou aquele personagem político pode chegar ao poder usando essas ferramentas de alteração da realidade da opinião pública manifestada pelo cidadão.
O desafio que se coloca agora é: Como esse personagem político poderá se manter no poder, se ele próprio já não pode mais controlar os mecanismos que o levaram ao poder?
Realidades distorcidas, leituras equivocadas de fatos, interpretação erradas de informações corretas e problemas de visão de mundo sempre existiram.
O fato novo na “telinha” do smartphone conectado a sistemas que já não se sabe onde estão abrigados é a capacidade de as ferramentas propagarem, como “verdades democráticas” uma absurda disrupção de conceitos que ninguém mais controla. Ou, para usar uma palavra moderna, tem mais qualquer curadoria de classe mundial.
É quando o conceito de “reportagem jornalística com texto fotos (e vídeos) feitos no local” vira uma narrativa despótica.