Erros na restauração da BR-101: a conta chegou

Publicado em 14/11/2019 às 11:18
Foto: NE10


Escolhas técnicas equivocadas - propositais ou não - foram o princípio da investigação da PF e tinham sido denunciadas por entidades de engenharia e a academia desde 2017. Foto: Bianca Souza/JC Imagem  

Como esperado e advertido por entidades nacionais e regionais de engenharia, pela academia pernambucana e pelos Tribunais de Conta do Estado (TCE) e da União (TCU), a conta pelos equívocos cometidos pelos governos federal e de Pernambuco nas obras de restauração dos 30,7 quilômetros do chamado contorno urbano que a BR-101 faz da Região Metropolitana do Recife, entre Abreu e Lima e Jaboatão dos Guararapes, chegou. Nesta quarta-feira (13), a Polícia Federal deflagrou uma operação, batizada de Outline (que em inglês significa contorno), para apurar suspeitas de desvios de recursos da obra, iniciada em 2017 ao custo de R$ 192 milhões e que está em fase final de execução. Esses recursos – que inicialmente são estimados em R$ 2 milhões – deveriam ter sido usados no serviço de restauração, intervenção esperada pela população há mais de 20 anos. Gestores e funcionários do Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco (DER-PE), do Consórcio Andrade Guedes e Astep Engenharia (executor do serviço), e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) estão sendo investigados.

A qualidade do novo pavimento do contorno da BR-101 é o ponto de partida da investigação, iniciada a partir de uma notícia-crime encaminhada à Superintendência da PF em Pernambuco, em janeiro. Relatórios de auditorias feitas pelo TCE e TCU – alimentadas pela denúncia técnica elaborada pelas entidades nacionais e regionais de engenharia – e entregues à polícia apontaram que a obra vem sendo executada com material de baixa qualidade e pouca durabilidade, o que pode já estar ou vir a afetar trechos da rodovia federal já entregues à circulação de veículos. Atualmente, mais de 97% dos serviços previstos na pista principal da rodovia foram finalizados e, apesar dos atrasos, toda a restauração deverá ser concluída em 2020 – embora o primeiro cronograma fosse ainda em 2019.

Na manhã desta quarta (13), a PF cumpriu dez mandados de busca e apreensão em endereços no Recife e em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana. Documentos, mídias digitais e uma arma foram apreendidos. O delegado federal responsável pela investigação, titular da Delegacia de Repressão à Corrupção, Daniel Silvestre, não quis divulgar os nomes nem as funções dos investigados, mas confirmou que os mandados tiveram como alvo as empresas Andrade Guedes e Astep Engenharia, sedes do DER e do Dnit. Também foram realizadas buscas nas residências de servidores públicos. Cerca de 50 policiais federais estiveram nos bairros de Boa Viagem, Candeias, Graças, Casa Forte, Pina, Santo Amaro e Guabiraba. Os mandados foram autorizados pela Justiça Federal, tendo como base auditoria técnica do TCU e acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco.

 

“Durante a investigação, que começou em janeiro, identificamos um desvio de R$ 2 milhões. Apenas um servidor do DER-PE teria atuado como fiscal dos serviços por aproximadamente metade do período das obras, algo considerado incomum para obras como estas. E uma empresa que fazia parte do consórcio vencedor da licitação para execução da restauração chegou a atuar como supervisora da obra, após o servidor do DER-PE. Mas ainda vamos realizar várias perícias para ver a qualidade e o comprometimento do pavimento”, explicou o delegado Daniel Silvestre.

A reportagem percorreu o contorno urbano da BR-101 e constatou que, pelo menos por enquanto, as equívocos apontados no projeto ainda não são visíveis. Após conversar com técnicos e motoristas, percebe-se alguns desníveis na pista e trechos que teriam sido refeitos por alguma razão. Agora, a rodovia segue sem defensas (proteção que separa as pistas e fundamental para evitar a invasão de veículos no sentido contrário no caso de acidentes).

As investigações realizadas desde janeiro apontaram irregularidades como a realização de serviços que não atendiam às especificações técnicas, instruções e normas adotadas pelo Dnit, o que pode causar a diminuição da vida útil e da segurança da obra. As apurações indicaram que esses serviços foram atestados por servidor do DER, em princípio, sem respaldo de documentos que comprovassem o atendimento aos requisitos técnicos do projeto de engenharia. Segundo o MPF, além disso, foi constatado que, em 2018, uma das construtoras do consórcio foi designada, pelo Dnit, como supervisora dos serviços, caracterizando possível conflito de interesses. Também foram detectados atrasos com relação ao cronograma e a contratação indevida de serviços de conservação e recuperação, com fortes indícios de montagem de licitação emergencial para o favorecimento de uma construtora do consórcio. A construtora, por sua vez, teria transferido valores a título de pagamentos de fornecedores a contas de empresas “fantasmas”, que não funcionam nos endereços indicados em seus estatutos.

 

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SEM SURPRESA

Para as entidades de engenharia que, ainda em 2017, fizeram um amplo e técnico alerta sobre os erros e vícios da restauração da BR-101, a investigação da PF não foi uma surpresa. Ao contrário, foi vista como uma constatação. “Era de se esperar porque os equívocos são muitos. Em dez anos, talvez até menos, os pernambucanos estarão trafegando numa rodovia repleta de problemas e os R$ 192 milhões destinados à obra terão sido desperdiçados. Além disso, o modelo de contratação escolhido (Regime Diferenciado de Contratação Integral – RDCI), não era o adequado, como alertamos, os tribunais e a PF constataram”, afirmou Stênio Cuentro, presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Civis em Pernambuco (Abenc-PE), entidade que assinou o alerta junto com a Associação dos Engenheiros de Segurança do Trabalho de Pernambuco (Aespe) e o Sindicato dos Engenheiros de Pernambuco (Senge).  

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  O pavimento foi o grande alvo do alerta. Os engenheiros, assim como aconteceu com os professores da UFPE, defendiam que o concreto ou pavimento rígido era a melhor opção para a BR-101. “Para trocar as 20 mil placas de concreto que compõem o contorno da BR-101 gastaríamos, tendo como base a tabela de preços paga pela Emlurb, R$ 100 milhões. Ou seja, seria viável recompor o pavimento da forma certa. Esse modelo que o Dnit escolheu e que o governo de Pernambuco validou não é certo. Deveríamos usar a mesma técnica de concretagem utilizada para fazer quase 400 quilômetros da BR-101 Nordeste, inclusive em Pernambuco”, destacou Cuentro.

Segundo o engenheiro, a técnica adotada na obra se assemelha a uma obturação mal feita de um dente. “Eles estão quebrando e triturando as placas que estão danificadas e já repletas de asfalto jogado sobre elas por anos. Abrem um buraco na base e o preenchem com o que chamamos de concreto pobre (CCR). Em seguida, colocam asfalto sobre ele. Isso não vai funcionar. O pavimento flexível tem vida útil limitada porque sofre com os efeitos do clima e do excesso de peso”, explicou o engenheiro.

Por nota, o DER-PE informou que, desde o primeiro momento, a diretoria do órgão disponibilizou o acesso e a documentação solicitada pela Polícia Federal, que cumpriu mandatos de busca e apreensão de documentos relativos a prestação de contas de obras na BR 101. Também defendeu o projeto que está executando. “As obras da BR-101 são realizadas em Regime de Contratação Diferenciada, resultante de um termo de compromisso firmado entre o governo federal, através do Dnit, e o governo de Pernambuco, através do DER, em 2017, com percentuais de participação financeira de 20% para o Estado de Pernambuco e 80% do Governo Federal. A obra conta com fiscalização própria do DER, por meio de uma empresa supervisora contratada, além de uma gerenciadora de obras e outra gerenciadora ambiental, ambas contratadas pelo Dnit. Na obra, o DER priorizou as vistorias técnicas, bem como a análise do material utilizado na obra, obedecendo aos critérios e prazos previstos no projeto da obra. Semanalmente, o TCE acompanha a fiscalização das obras, cujo andamento segue as normas técnicas vigentes”. O DER reforçou, ainda, dispor de dados comprovando a qualidade dos serviços realizados e que os mesmos estão em conformidade com as normas vigentes.  

Abaixo, a íntegra do documento que será entregue oficialmente ao governo do Estado

     

O posicionamento do DNIT em Pernambuco:

"Em relação à operação da Polícia Federal deflagrada no Estado de Pernambuco, nesta quarta-feira (13), com o objetivo de apurar eventuais irregularidades em obras na BR-101, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) informa:

- O DNIT se coloca à disposição das autoridades para colaborar com os esclarecimentos que se fizerem necessários, visando a completa elucidação dos fatos;

- Eventuais desvios também serão objeto de apuração interna, por meio dos mecanismos de correição da autarquia;

- O DNIT reafirma estar em permanente contato com os órgãos de controle e que pauta sua atuação dentro da legalidade e lisura, respeitando todos os princípios éticos da administração pública". A reportagem não conseguiu contato com o Consórcio Andrade Guedes e Astep.

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BR-101 Polícia Federal pernambuco
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