Trânsito, transportes e mobilidade urbana, com Roberta Soares

Mobilidade

Por Roberta Soares e equipe
COLUNA MOBILIDADE

A morte do BRT: financiamento do transporte público é responsabilidade de todos

A urgência de criar novas fontes extra tarifárias, e até um marco regulatório para o transporte público, é o tema da terceira e última reportagem da série A morte do BRT

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Roberta Soares

Publicado em 26/12/2021 às 8:00
Parceria entre MDR e BNDES também prevê estudos de projetos de BRTs nas regiões metropolitanas com mais de um milhão de habitantes - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Não tem almoço de graça e alguém sempre paga a conta. Essas duas frases são frequentemente verbalizadas no transporte público coletivo. Quem vive no setor sabe disso. No mundo, ainda mais no Brasil. Com a diferença que, em muitos países, essa conta é paga por todos, pela sociedade em geral, usuária ou não dos ônibus e metrôs que circulam nas cidades. O entendimento - forçado pela visão da gestão pública, é importante destacar esse papel - é de que o transporte coletivo beneficia a todos: comércio, serviços em geral, indústria imobiliária, construção civil, escolas e universidades, para citar alguns setores. Por isso, a contribuição deve ser feita por todos. No Brasil, é diferente. Bem diferente. Seguimos colocando o ônus dessa conta quase que exclusivamente no bolso do passageiro - especialmente daquele mais pobre, que tem menos renda. A discussão de criar novas fontes extra tarifárias, e até um marco regulatório para o transporte público, tem avançado no País, principalmente com a crise da pandemia de covid-19 que afastou a demanda. Mas nada aconteceu na prática ainda. E é exatamente sobre a urgência de essas fontes serem definidas - para o bem do transporte público em geral, ainda mais para os sistemas BRTs - que trata a terceira e última reportagem da série A morte do BRT.

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A morte do BRT - Artes JC

Financiamento público precisa ser enfrentado

Não dá mais para adiar a inversão da lógica de que o transporte público coletivo é problema apenas de quem o utiliza. Não é justo. A mudança de percepção precisa acontecer na sociedade como um todo - é claro -, mas é urgente que comece pelos poderes constituídos. Há muitos anos se discute fontes extra tarifárias para o transporte público brasileiro, enquanto muitos países já adotaram o modelo e são exemplos. Mesmo assim, o Brasil não avançou. Agora, a crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 parece estar apressando essa mudança no País, por incrível que pareça. O Brasil discute - desta vez formalmente no Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e no Congresso Nacional - algumas propostas de financiamentos com fontes certas, criação de um fundo público e até de um marco legal para o transporte público - o que atenderia também aos sistemas BRTs do País.

Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
O corredor leste-oeste do ônibus BRT, está funcionando de forma regular, mesmo com alguns problemas e falta de manutenção. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
Avenida Cruz Cabugá recebe um grande volume de veículos particulares por representar o principal acesso da região Norte do Grande Recife ao Centro da capital - GUGA MATOS/ARQUIVO JC IMAGEM


Uma solução coletiva, que destine parte de taxas e impostos já cobrados da sociedade, por exemplo, é urgente. Manter o custo sobre o passageiro - que teve uma fuga permanente dos ônibus e metrôs de 30% a 40% devido às consequências da pandemia - é um erro histórico e que, parece, agora está sendo percebido pelo poder público - principalmente pelo governo federal, que é a esfera necessária para custear e determinar fontes. Tudo isso, é claro, com a garantia de contrapartidas do setor privado que opera os sistemas. Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% vêm de tarifas cobradas dos passageiros. As subvenções públicas representam apenas 10,2% do montante, enquanto as receitas extra-tarifárias (como publicidade e locação de espaços, por exemplo) somam R$ 375 mil.

Esse inclusive, é o pensamento dos países estrangeiros, principalmente os europeus. Em parte dos EUA também. Nova York, por exemplo, trata o transporte coletivo metroviário e por ônibus como rei, destinando bilhões para os sistemas a partir de uma espécie de mix de impostos e taxas. Já o Brasil, segue vendo o transporte coletivo como uma atividade privada, que deve ter soluções como um negócio privado. Sem perceber a importância e o alcance social dele. Em Pernambuco, por exemplo, o custo do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana (STPP/RMR) é praticamente todo financiado pela tarifa do passageiro.

série A morte do BRT 1 - ARTES/JC


Em números oficiais de antes da pandemia, 85% do custo vinha da tarifa e apenas 15% eram de subsídios. Em 2021, inclusive, o subsídio do governo do Estado diminuiu em relação a 2020 e 2019. Passou de R$ 207 milhões e R$ 222 milhões, respectivamente, para R$ 131 milhões até meados de dezembro. Ainda considerando dados de antes da covid-19, o STPP custava R$ 1,3 bilhão por ano, dos quais R$ 1,1 bilhão vinha da tarifa. No Brasil, São Paulo seria a grande diferença: subsídios anuais superiores aos R$ 4 bilhões em 2021.

PROPOSTAS

O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) criou o Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana, composto por representantes da sociedade civil, técnicos e empresários do setor de transporte, para discutir saídas imediatas para a crise do transporte público nas cidades. Algo para ontem, já que o próprio governo federal não autorizou - apesar dos apelos - a liberação de um auxílio emergencial de R$ 4 bilhões ainda no primeiro ano da pandemia. As propostas devem ser divulgadas ainda no início de 2022. Entre elas, a criação do Vale Transporte Social, que daria gratuidade a pessoas de baixa renda, que estão cadastradas no CadÚnico. E o custeio da gratuidade dos idosos pela União, solução que foi apresentada pelos operadores.

Não só sobre o carro, via repasse de percentuais das taxas cobradas dos combustíveis e dos estacionamentos, por exemplo, mas também do setor imobiliário, extremamente beneficiado quando localizado próximo a corredores de transporte coletivo",
Nazareno Affonso, do MDT

Nazareno Affonso, diretor-executivo nacional do MDT - MDT/DIVULGAÇÃO

Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), defende a proposta do VT Social, mas questiona a de custeio da gratuidade dos idosos. “A ideia é bastante interessante porque atrairia de volta para o serviço as pessoas excluídas pelo alto valor das tarifas de ônibus. Essa população passaria a se deslocar para acessar outros direitos, como procurar emprego, trabalhar, estudar, ir ao médico, além de fazer compras, se divertir etc. Ou seja, é a inclusão social por meio da mobilidade, que também geraria um impacto econômico positivo para as cidades. Já a proposta de custeio é difícil de ser implantada, mesmo apoiada pelos prefeitos, porque ela apenas transfere a responsabilidade para o governo federal. Ou seja, seria apenas uma injeção de recursos no setor, sem gerar nenhuma melhoria ou contrapartida. Além disso, essa iniciativa pode reforçar a crítica já existente a esse benefício”, alerta Calabria.

O técnico ainda destaca que a proposta é de difícil implementação porque os idosos não têm o acesso ao transporte vinculado ao bilhete eletrônico, sendo necessária apenas a apresentação do RG. “Como as prefeituras não possuem qualquer controle sobre o número de idosos que usam o serviço, a quantificação da proposta fica inviável”, reforça Calabria. Nazareno Affonso, diretor-executivo nacional do Instituto Movimento Nacional Pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT), que propõe a criação do Sistema Único da Mobilidade Urbana Sustentável (SUM), o SUS da mobilidade, pensa como o Idec e ainda defende que a principal fonte extra tarifária deve vir do automóvel. “Não só sobre o carro, via repasse de percentuais das taxas cobradas dos combustíveis e dos estacionamentos, por exemplo, mas também do setor imobiliário, extremamente beneficiado quando localizado próximo a corredores de transporte coletivo", pontua.

série A morte do BRT 2 - ARTES/JC

MARCO LEGAL

Para além do socorro emergencial, está avançando no País também a discussão de um novo Marco Legal do transporte, proposta encabeçada pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbanos (NTU). É apontada como solução imediata para evitar uma sequência de reajustes de tarifas que podem elevar o preço das passagens ou, no pior cenário, a falência generalizada dos sistemas de transporte coletivo urbano no País. O Projeto de Lei 3278/2021, de autoria do senador Antônio Anastasia (PSD-MG), reúne as ideias que propõem novas regras de custeio e contratação dos serviços. O PL foi apresentado ao Senado Federal em setembro, mas ainda não tem tramitação definida.

O setor está otimista. “Estamos há mais de um ano discutindo o apoio ao transporte público coletivo brasileiro e observamos que, finalmente, o governo federal começa a demonstrar sensibilidade e vontade de resolver a questão. A sinalização da criação do VT Social, feita pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo. A criação do fórum com várias entidades representativas para tratar a sustentabilidade do sistema é outra demonstração. Há uma sinalização de que é possível vir uma ajuda ainda nos primeiros meses de 2022, quando acontecem os reajustes tarifários”, afirma Otávio Vieira da Cunha, presidente executivo da NTU.

A proposta do Marco Legal para o transporte, segundo a NTU, é algo semelhante ao criado para o saneamento. É a maior aposta do setor para tentar reverter o prejuízo superior a R$ 17 bilhões acumulado desde o início da pandemia e a fuga do passageiro. O novo Marco Legal do transporte público tem três pilares: qualidade e produtividade, financiamento e regulação dos contratos. O primeiro transfere para o governo federal algumas responsabilidades que vão além da ajuda com a infraestrutura das cidades. O setor propõe que o governo federal defina parâmetros nacionais de eficiência e qualidade como referência para estados e municípios, tendo como base a Lei Nacional de Mobilidade Urbana. A aposta é que, assim, a imagem do setor, negativa por décadas para a população, possa melhorar.

O segundo pilar, de financiamento, foi dividido entre custeio e investimentos. O ponto central da proposta de custeio é a diferenciação entre a tarifa pública e a tarifa de remuneração do operador, que resolveria o principal entrave para a oferta de um serviço de qualidade. Na maior parte das cidades, o transporte público é custeado unicamente pela tarifa paga pelo passageiro, que arca sozinho com os altos custos do serviço. De acordo com a NTU, um ponto fundamental para equilibrar as tarifas pública e de remuneração é atacar a questão das gratuidades, que pesam 20% na média nacional dos custos dos sistemas. Se o governo federal assumisse a gratuidade dos idosos, por exemplo, haveria uma injeção de R$ 5 bilhões ao setor. Hoje, quem paga a gratuidade dos idosos é o passageiro pagante, geralmente aquele que paga a tarifa integral e, em muitos casos, sem direito ao vale-transporte, por exemplo.

Estamos há mais de um ano discutindo o apoio ao transporte público coletivo brasileiro e observamos que, finalmente, o governo federal começa a demonstrar sensibilidade e vontade de resolver a questão. A sinalização da criação do VT Social, feita pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo. A criação do fórum com várias entidades representativas para tratar a sustentabilidade do sistema é outra demonstração. Há uma sinalização de que é possível vir uma ajuda ainda nos primeiros meses de 2022, quando acontecem os reajustes tarifários”,
afirma Otávio Vieira da Cunha, presidente executivo da NTU

Otávio Vieira da Cunha, presidente da NTU - NTU/DIVULGAÇÃO

Sob o aspecto financeiro, é proposto um tratamento tributário diferenciado, que o setor já pleiteia na Reforma Tributária. Esse tratamento diferenciado poderia representar 15% na redução de custos dos serviços. Para estruturar o custeio o setor propõe a criação de um fundo nacional do transporte público urbano que seria interfederativo e reuniria aportes das três esferas de governo: federal, estadual e municipal, além de fontes extra tarifárias de recursos.

É proposto, ainda, o reforço e a continuidade das linhas de financiamento oficiais existentes no BNDES (Finame), assim como o Pró-Transporte, operado com recursos do FGTS pela Caixa Econômica Federal (CEF). Os investimentos em infraestrutura nas cidades também seguiria. Em contrapartida, o setor investiria em parcerias público-privadas (PPPs).

BRT pernambucano teve um 2020 ainda pior do que em 2019. Foi, dessa vez de forma mais grave, quase que totalmente vandalizado durante a pandemia - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Segundo o TCE, Pernambuco tem mais de 1700 obras paralisadas e inacabadas, como o Canal do Fragoso em Olinda e os corredores Norte-Sul e Leste-Oeste dos BRTs. - FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
As paradas de ônibus do BRT, na PE-15, em Olinda, estão sem nenhuma manutenção, após serem abandonadas pelo poder público, com seguidos casos de depredação e roubos. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
Estações do BRT foram totalmente destruídas durante a pandemia. Governo já gastou quase R$ 10 milhões para recuperá-las - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
Estações do BRT foram totalmente destruídas durante a pandemia. Governo já gastou quase R$ 10 milhões para recuperá-las - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
Os equipamentos passarão a ser operados, reformados, modernizados e administrados por empresas particulares que tenham expertise na área - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

SEGURANÇA JURÍDICA

O terceiro e último pilar do novo marco legal do transporte público recai sobre a regulação e os contratos de concessão. Assim, o setor propõe alterações na Lei de Mobilidade Urbana com a criação de um capítulo específico sobre transporte público coletivo. A ideia é acompanhar o que foi feito no marco do saneamento, aprovado no Congresso Nacional em 2020. A proposta do setor é a remuneração dos operadores baseada nos custos de produção atrelados a parâmetros de qualidade e produtividade.

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