No inquérito policial, de quase 700 páginas, que investigou a morte da menina Heloysa Gabrielle, de 6 anos, na praia de Porto de Galinhas, Litoral Sul de Pernambuco, são apontados indícios de que os policiais militares do Batalhão de Operações Especiais (Bope) envolvidos na ação praticaram fraude processual.
A coluna Ronda JC teve acesso à íntegra do relatório das investigações da Polícia Civil, nesta terça-feira (16), no mesmo dia em que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) encaminhou à Justiça a denúncia contra o cabo da Polícia Militar Diego Felipe de França Silva, apontado como o responsável pelo tiro que matou Heloysa.
O policial militar do Bope, cujo nome foi revelado pelo MPPE, foi indiciado por homicídio qualificado - por resultar em perigo comum e por erro de execução (quando se pretende ferir alguém, mas outra pessoa é atingida).
Inicialmente, o cabo do Bope responderá ao processo em liberdade, mas o MPPE solicitou que ele seja afastado das atividades nas ruas e que seja proibido de manter contato com testemunhas do caso e familiares da menina.
Heloysa foi morta com um tiro no peito na tarde do dia 30 de março de 2022, durante uma perseguição policial. A menina brincava na rua. No final do mês de julho, a Polícia Civil de Pernambuco concluiu as investigações, mas não quis revelar detalhes do caso. O secretário de Defesa Social, Humberto Freire, também se negou, sem explicar o motivo do silêncio - visto que o caso não está em segredo de justiça.
O relatório da Polícia Civil, repassado por uma fonte à coluna Ronda JC, aponta que os policiais militares do Bope envolvidos na ação que resultou na morte de Heloysa mentiram em depoimento - inclusive no boletim de ocorrência (B.O.) confeccionado logo após a ocorrência.
No B.O., os policiais afirmaram que realizaram uma perseguição a um suspeito que seguia de motocicleta na comunidade de Salinas, em Porto de Galinhas. E que teria ocorrido uma troca de tiros.
"Mais a frente, o indivíduo caiu da motocicleta e, ao levantar, conseguiu efetuar vários disparos de arma de fogo contra o efetivo, momento em que foi respondida a injusta agressão. Após o acompanhamento do indivíduo e nova troca de tiros, o efetivo não conseguiu detê-lo", diz trecho do relato.
Em depoimentos individuais, posteriormente, os PMs do Bope também destacaram que o suspeito atirou contra as viaturas.
A investigação, no entanto, mostrou que o suspeito não efetuou nenhum disparo contra os policiais do Bope. Isso foi comprovado a partir dos depoimentos de testemunhas no local onde a menina foi morta e também por perícias realizadas nas armas de fogo entregues pelos policiais e na reprodução simulada.
Os PMs contaram ter apreendido um revólver calibre 22 com três munições deflagradas e três intactas e atribuíram a arma ao suspeito que estava sendo perseguido e que conseguiu fugir.
O suspeito, posteriormente, se apresentou à polícia e afirmou nunca ter usado uma arma de fogo.
A perícia, em relatório final, também excluiu a possibilidade de o tiro que atingiu menina ter sido de uma arma calibre 22.
A perícia, inclusive, apontou que o mais provável é que tenha sido de uma arma calibre .40, a mesma usada pelo policial indiciado - e que confessou ter disparado tiros durante a perseguição policial.
Após a morte da menina, as duas viaturas usadas pelos policiais do Bope na ação foram apresentadas na sede do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), no Recife. Uma delas estava com marcas de tiros.
A perícia do Instituto de Criminalística constatou que os tiros disparados em viatura foram de uma arma calibre 22, mas que "são danos centralizados demais para terem sido causados por uma pessoa em movimento contra um veículo em movimento". Outro indício de que houve fraude processual por parte dos policiais.
Outro detalhe é que testemunhas contaram, em depoimento, que os PMs do Bope recolheram os cartuchos e projéteis logo após os disparos de tiros - o que dificultou o trabalho da perícia na cena do crime.
"É importante destacar os claros indícios de fraude processual", destacou relatório do inquérito policial assinado por quatro delegados: Ícaro Barros Schneider, Cláudio Alves da Silva Neto, Victor Hugo Jardim e Marcos de Castro Guimarães Junior.
A Secretaria de Defesa Social (SDS) informou que o PM indiciado pelo homicídio de Heloysa foi "realocado da atividade operacional para outra função".
A defesa de Diego Felipe de França Silva não foi encontrada para comentar o caso.
A morte de Heloysa resultou em protestos, fechamento do comércio e medo em Porto de Galinhas. Foi preciso reforço de centenas de policiais para que a situação na praia ficasse mais tranquila.
Em 26 de maio deste ano, outro fato chamou a atenção. Policiais do Bope mataram o suspeito que estaria sendo perseguido no momento da morte de Heloysa.
De acordo com a versão apresentada pela Polícia Militar, Manoel Aurélio do Nascimento Filho e mais dois homens estavam em um carro e iriam realizar um atentado contra um detento do Presídio de Igarassu, que seria liberado. Por isso, uma equipe do Bope teria ido ao local para evitar o crime. Na suposta troca de tiros, o suspeito foi morto.
Os PMs envolvidos na morte do suspeito não são os mesmos que participaram da perseguição policial que resultou na morte de Heloysa. Em nota, a Polícia Civil disse que concluiu essa investigação e que "não foi encontrada relação entre as mortes de Manoel Aurélio e de Heloysa".
Ainda assim, a conduta dos policiais militares, nas duas ações, está sendo investigada pela Corregedoria da Secretaria de Defesa Social (SDS), mas ainda não há prazo para conclusão.
A violência armada contra crianças e adolescentes cresceu no Grande Recife no primeiro semestre de 2022. Levantamento do Instituto Fogo Cruzado aponta que pelo menos 78 vítimas foram baleadas. Desse total de registros, duas crianças e 43 adolescentes morreram.
Segundo as estatísticas do Fogo Cruzado, quatro crianças e 49 adolescentes foram baleados (36 garotos e garotas entre 12 e 17 anos morreram) no primeiro semestre de 2021.
Em comparação com aquele semestre, este ano houve aumento de 50% na quantidade de crianças baleadas, e de 47% nos adolescentes baleados.