Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), onde foi professor e reitor, o ex-ministro da Educação Cristovam Buarque vem ao Recife nesta terça-feira (19) para lançar o livro “O mundo é uma escola – O que aprendi em viagens”, publicado pela editora Jaguatirica. São 85 histórias extraídas de dezenas de países visitados ao longo de décadas. Do Vaticano à Toritama, de Paris ao Sertão pernambucano, da Índia à Amazônia, da Suíça à Campina Grande, os passeios narrados por Cristovam Buarque atiçam a curiosidade e o senso crítico dos leitores. O lançamento, que conta com o apoio da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco e do Cine PE Festival do Audiovisual, será na Livraria Leitura do Riomar Recife a partir das 19h.
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JC - Como a aventura de aprender e o prazer de viajar se encontram neste livro, que reúne histórias, testemunhos e lições?
Cristovam Buarque - Gostei da pergunta. Não tinha pensado nestes termos de juntar aventura, prazer e aprendizado. Mas foi exatamente isto que vivi. Acrescento o prazer de escrever, tanto quanto de contar as estórias de viagens e mostrar lembranças que todos gostam depois das viagens. O gosto de escrever e reescrever cada relato. Falta ainda a satisfação de as pessoas lerem e gostarem de saber, e se identificarem com as lições que recebi ao perceber fatos e conversas inusitadas, surpreendentes.
JC - São muitos lugares, e muitas histórias. Foi difícil sintetizar a memória de cada uma, e as reflexões que suscitaram? Conte um pouco sobre o trabalho de edição.
Cristovam Buarque - Todos os relatos foram feitos anos ou décadas depois dos fatos. Apesar de anotar durante as viagens, preferi não consultar as notas. Escrevi apenas o que lembrei. Mas reescrevi muitas vezes cada relato, até chegar a um texto que me satisfizesse pela qualidade da narrativa e pela novidade das reflexões. Ao escrever percebi o hiato de tempo entre a viagem e a reflexão respectiva: na caça de baleias eu tinha 20 e poucos anos, a reflexão escrita só chegou com décadas de estudos sobre economia, ecologia e ética. Que eu chamo de “econologia”, no Glossário do livro. São 250 palavras ou conceitos que resumem o conjunto das reflexões.
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JC - Uma característica marcante no livro “O mundo é uma escola” vem a ser o paralelo entre a observação do lugar distante e a realidade brasileira, nordestina, pernambucana, que você leva na experiência de vida. Essa possibilidade é uma das vantagens da globalização – o reconhecimento do local no global?
Cristovam Buarque - Quando a gente viaja carrega na mala a alma que recebeu de onde nasceu e viveu os primeiros anos. Viajo sempre com mala muito pequena, mas sempre Pernambuco vai dentro. Embora o livro tenha pouca viagem em Pernambuco, certamente o olhar que eu uso foi fabricado aí: a paisagem social recifense, as influências familiares, escolares, políticas, amizades. O livro é o que aprendi no mundo, mas foi escrito com sotaque pernambucano, por olhos nordestinos. É preciso voar sem tirar os pés da terra onde nascemos.
JC - Em um dos relatos, você revisita viagens a Toritama que renderam um livro anterior, chamado “Década Perdida”. Quais as consequências do atraso em fazer da educação um eixo de um projeto nacional de desenvolvimento no Brasil?
Cristovam Buarque - Esta sua pergunta deveria estar escrita em todas as partes do Brasil. Especialmente nos plenários do Congresso. O Brasil tem dois problemas: falta de coesão e de rumo. Dois problemas que decorrem de décadas desprezando a educação de qualidade para todos: o filho do mais pobre em uma escola tão boa quanto a do filho do mais rico, e tão boa quanto as melhores do mundo. Talvez meu maior aprendizado foi perceber que isto é possível, e que o Brasil nega isto porque não aceitou o fim da escravidão. Quando não puderam barrar a Lei Áurea, os poderosos pensaram “tudo bem, liberta os escravos, mas deixamos os filhos deles em escolas diferentes das escolas de nossos filhos”. A desigualdade na qualidade da escola foi um antídoto à Aboliço. Nabuco já previa isto. (No Glossário do livro chamo aos poderosos de “élite” para diferenciar dos melhores que compõem a “elite”.) A escola desigual forma a elite apenas entre os que podem comprar boa escola, e a corrompe como “élite” para manter a desigualdade. E o Brasil fica atrasado, porque desperdiça seus cérebros. Somos um crematório de cérebros.
JC - Na Índia, a inspiração de Kerala lhe fez pensar que “para erradicar a pobreza é preciso utilizar o sentimento de responsabilidade e de urgência da lógica feminina”. O que viu em Kerala?
Cristovam Buarque - O que vi em Kerala é que a superação da pobreza não decorre nem precisa esperar pelo crescimento econômico. Esta é uma das melhores partes do livro. Junto com a parte sobre Bangladesh, que trata do papel do microcrédito como instrumento para superação da pobreza e da alienação das universidades em relação ao problema da pobreza. A pobreza deve ser superada por políticas sociais que mobilizem os pobres para que eles produzam o que precisam para sair da pobreza. Se a SUDENE tivesse se orientado nesta perspectiva, estaríamos hoje com menos pobreza, embora talvez com menos riqueza. A orla de Boa Viagem provavelmente não seria tão exuberantemente rica, mas o bairro de Santo Antônio não estaria tão tristemente degradado. E haveria mais bem-estar geral. Aprendi que escolhemos uma “modernidade apressada” e ela ficou uma “modernidade deformada”.
JC - Há um trecho particularmente belo sobre o valor da terra natal e das primeiras experiências no mundo: “As portas se abrem de um lugar para outro, as pontes vão de um lugar para outro, passagens e transformações existem e ocorrem, mas o ponto de partida deve continuar firme no lugar e no tempo em que nascemos e vivemos os primeiros anos de formação”. Para aprender com as viagens e com outras visões, o que é preciso aprender, antes, no ponto de partida?
Cristovam Buarque - Para ver é preciso primeiro abrir os olhos. Olhos como metáfora de órgão dos sentimentos. Porque os cegos também sentem. Os olhos, nós abrimos onde nascemos e crescemos. Nascemos duas vezes: quando saímos do ventre da mãe e quando entramos na escola: professores, pais, amigos, livros, filmes. Os escravocratas entenderam isto ao aceitar o ventre livre da mãe escrava, mas mantendo a escola fechada para os filhos delas. Sabiam tanto disto, que aos recém-nascidos não chamavam libertos, mas “ingênuos”. Viajar mostra o mundo, mas é a terra natal que abre os olhos.
JC - Você diz que viaja procurando ideias e fatos que lhe surpreendam. E o que não lhe surpreende mais, Cristovam?
Cristovam Buarque - O mundo é uma caixinha de surpresas. Ele as produz constantemente, mas elas só chegam se estivermos predispostos a senti-las. As surpresas que deslumbram estão fora, mas só chegam para quem as percebe, é preciso uma predisposição. Não me surpreende mais o tamanho da maldade. Mas ainda me surpreende ver que o maior exportador de alimentos do mundo é um dos países com maior número de pessoas que passam fome. E que, apesar disto, nossa televisão se dedica com tanta ênfase à publicidade de alimentos e programas de gastronomia. Somos um país “gastrofômico”. Esta palavra me surpreendeu agora, por isto não está no Glossário do “O Mundo é uma Escola”. Lamento não estar presente quando acontecer a grande surpresa da Lei do Ventre Livre em vigor: todos os brasileiros concluindo um ensino médio com a máxima qualidade.