Professores se desdobram, em meio à pandemia, para alterar forma de trabalho e tornar atrativas as aulas remotas

Pesquisa mostrou que 89% dos professores brasileiros da Educação Básica não tinham nenhuma experiência anterior com ensino à distância
Maria Lígia Barros
Publicado em 02/08/2020 às 8:00
Professor tem levado atividade escolares para os 19 alunos da rede municipal da pequena comunidade do Sítio da Onça, em Tacaimbó, no Agreste de Pernambuco Foto: Jefferson Nascimento


Aprender a usar novas tecnologias, ao mesmo tempo em que se lida com as faltas na inclusão digital, tem feito parte da experiência inédita vivida pelos professores nos últimos meses. A pandemia do covid-19 ensejou mudanças profundas - e repentinas - nos métodos de ensino. De uma hora para outra, os educadores foram escalados para outra linha de frente, em um tipo diferente de atividade essencial - a que não é permitida presencialmente, mas não pode parar. Em grande parte, as câmeras substituíram a sala de aula e as lições foram movidas para o ambiente virtual.

No País, 84% dos profissionais continuam desenvolvendo atividades de trabalho de forma remota, segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), com 15.654 magistrados de todos os Estados. Ao mesmo tempo, 89% não tinha nenhuma experiência anterior em educação à distância. Desafios sentidos de maneiras diferentes nas redes pública e privada, e nas zonas rural e urbana de Pernambuco.

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Tarefas de casa em casa

Só quatro das 14 casas do Sítio Onça, na zona rural de Tacaimbó, Agreste de Pernambuco, têm internet. Entre os quase 70 moradores, 19 frequentam a pequena Escola Municipal Professora Porfíria de Araújo, uma casa azul com cinco cômodos - sala de aula, cozinha e três banheiros. São alunos do maternal ao 5º ano, que estudam juntos, no turno da tarde, na única turma, conduzida pelo educador José Jovino da Silva, 60 anos.

Os desafios, que já são muitos, em tempo de pandemia se intensificam. Com a suspensão das aulas presenciais, decretada pelo governo do Estado em março, a Secretaria de Educação de Tacaimbó orientou os professores a darem continuidade ao ano letivo pelo ensino remoto - solução possível na área urbana.

No bairro afastado, no entanto, se provou inviável. "Eu não tinha como mandar atividade só para quatro casas. E as outras?", perguntou-se Jovino. Estava de licença quando o coronavírus chegou a Pernambuco. Voltou às atividades no dia 20 de junho, e decidiu não deixar os estudantes desassistidos. "Como tenho notebook e impressora em casa, resolvi imprimir as atividades e entregar na casa dos alunos."

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Toda segunda-feira, Jovino pega sua moto e percorre quatro quilômetros para encontrar as crianças, recolhe as tarefas da semana anterior e distribui as novas. "É muito gratificante." O sentimento motor para a atitude, contou, é "o amor em ver a educação funcionar". "Se eu ficasse em casa para os pais buscarem nem todos poderiam. Muitos diriam que não tinham tempo."

A iniciativa foi aprovada pelos pais. A agricultora Roseane Erundina de Melo, 37, tem dois filhos: Sabrina, 11 anos, e Riquelme, 8. "No sítio, a única saída que as crianças têm é a escola. Com a pandemia, as escolas fecharam e as crianças ficaram trancadas dentro de casa. Como ele vem, incentiva muito elas a estudar."

Desde que o professor passou a visitá-los, ela notou os alunos muito mais empenhados. “Eles já ficam na expectativa, esperando a hora que ele vem trazer a atividade. Quando chega, é a maior alegria, já vão direto pra mesinha estudar, fazer a tarefa.”

Em face da adversidade, Jovino não desistiu. Não é a primeira vez que supera obstáculos em nome da educação. Nascido e criado no Sítio Onça, foi na mesma casinha azul, há quase 50 anos atrás, que iniciou sua vida acadêmica. “Sou filho de agricultor. Eu só pude ingressar na escola quando tive 12 anos, com o antigo Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização, programa de ensino do governo Costa e Silva, na ditadura militar), à noite. Era uma salinha muito apertada, com muitos alunos, ao claro do candeeiro. Quando não era candeeiro, era uma vela no meio da mesa”, relembrou”.

A dedicação da professora era sua inspiração, servindo de espelho ao então jovem. “O tempo foi passando, eu terminei a quarta série, que hoje é o quinto ano. Ela me incentivou a fazer o magistério, andando de dez a doze quilômetros, duas vezes por semana, para fazer as atividades do curso”, revelou.

Caminhando a pé, concluiu a formação de professor pelo projeto Logos II, implantado na década de 70 em alguns Estados do Brasil. Mais tarde, cursou pedagogia, e, há quatro anos, formou-se em Gestão Escolar. Para ele, história de superação pessoal que contribuiu, hoje, para insistir em levar a educação à porta dos alunos.

Atenção na criatividade

O assunto da aula é arte barroca, movimento que nasceu na Europa no século 16. Para explicar o conteúdo, a professora se caracteriza como a Moça com o brinco de pérola, personagem do quadro homônimo do artista holandês Johannes Vermeer, de 1665.

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Quem trabalha com crianças precisa encontrar formas de prender a atenção dos pequenos diante das telas. Foi desse jeito, com acessórios e adereços, que a professora de história da arte Carla Braga, do Colégio Santa Maria, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, usou a ludicidade nas lições virtuais e capturou o interesse dos alunos.

Quando a pandemia começou, o presencial fez falta. "Trabalhamos com ensino fundamental I, crianças de 7 a 10 anos, tem muito afago, carinho, socialização. Essa virada de chave, do presencial para o remoto, causou surpresa, estranheza. Era tudo muito novo", relatou. "Tinha a ansiedade do colégio, de saber se ia dar certo, se os alunos iam acompanhar, se os pais iam se engajar no processo."

Com a ruptura, as aulas precisaram ser reestruturadas. "Se havia trabalho usando tinta, tela, material que teria na escola, readaptei para um material fácil de encontrar em casa."

Mas, assim como foi rápida a mudança, foi a adaptação. "Num piscar de olhos, tivemos uma mudança nas relações sociais, nas emoções sentidas, na percepção dos alunos. Quando fizemos as primeiras lives, houve encantamento e eles disseram: 'Tia, que maravilha, estou lhe vendo!'".

"Uma mãe me contou que o filho tem buscado mais conhecimento. Após a aula, eles são orientados a fazer pesquisa para apresentar no encontro seguinte. Quando a gente trabalhou Leonardo da Vinci (pintor renascentista), teve aluno fazendo apresentação com alguns dos seus manuscritos. Há uma interação muito grande da tecnologia com esse processo do saber", comemorou.

Para não perder a aluna

No Recife, uma professora de inglês se sensibilizou com a situação dos jovens que não conseguiam acompanhar as aulas remotas e doou um celular a um deles. O presente foi destinado a uma aluna com deficiência auditiva da Escola Governador Barbosa Lima, nas Graças, Zona Norte do Recife. A unidade é uma das duas em que Rosária Dreyer, 58 anos, leciona.

Professora da rede estadual há 24 anos, Rosária conhece a realidade de perto. “Eu entendo atualmente as dificuldades de todo mundo inserido na educação pública. São tantas pessoas de diferentes perfis. Além de alguns alunos não terem uma ferramenta adequada, uma aluna em especial foi alvo de da nossa atenção”, contou.

Conversou com colegas da escola, eles apontaram a estudante em questão. “O celular dela havia quebrado e ela se deslocava bastante, até a casa de um amigo, para poder usar o dele e ver as aulas. Ela precisava de um aparelho de melhor qualidade, porque sendo uma aluna com deficiência auditiva, precisava de uma boa imagem para captar o intérprete de libras”, disse.

O presente foi entregue nessa quinta-feira (30). “Foi muito bom. Ela agradeceu muito, e eu a desejei boa sorte nos estudos”, expressou. O gesto da professora chamou atenção do gestor da escola, Érick Rangel. “A gente vê uma questão de humanização e de amor à educação. É uma preocupação que vai além do cognitivo, do só aprender. uma preocupação com o ser, com o indivíduo, que pertence a um contexto social”, definiu Érick.

A aluna não foi a única a enfrentar desafios. A professora também. Foi a primeira vez que Rosária teve contato com as ferramentas para aulas virtuais. "A escola fez um tutorial para ajudar os professores a ingressarem na plataforma. Houve dificuldade na primeira semana, mas a segunda já foi mais tranquila e a gente conseguiu inserir as atividades novamente." Para ela, a adoção gradual de um sistema unificado em toda rede ajudou. "Ter chegado a uma norma padrão facilitou o trabalho. Agora, a situação está bem mais fácil."

A rede estadual adotou o sistema online do Google Classroom e a plataforma de Educa PE, de videoaulas pela televisão. Os professores também mantêm contato com os alunos através de e-mail e grupos de WhatsApp. "Como toda escola, a gente não atinge 100% dos alunos com as atividades remotas, mas temos trabalhado para isso", explicou Érick.

Novo rumo profissional

Nas escolas particulares, onde a disponibilidade de recursos é maior, os educadores tiveram que se desdobrar para dominar as novas tecnologias.

Entre aprender a usar e preparar as aulas virtuais, as horas de trabalho do professor de Física José Fernandes, 52, praticamente dobraram nos primeiros meses da pandemia. “Eu trabalhava por volta de 20 horas por semana, e com preparação gastava mais 5. Depois da pandemia, comecei a trabalhar 40 horas por semana”, revelou o magistrado. “Isso se não pegasse fim de semana. Sábado e domingo preparando vídeo. Agora, esse tempo diminuiu. Como no início não tinha a habilidade, era mais difícil. Hoje está melhor. Aprendi muita coisa, mas foi muito trabalho.”

Ele precisa produzir conteúdo em pelo menos quatro formatos diferentes para os alunos do Colégio Boa Viagem (CBV), na Zona Sul do Recife, uma das instituições onde ensina: videoaula pré-gravada, live, formulário de questões e podcasts com slides.

“Quando você dá uma live de 50 minutos, você passa de 2 a 3 horas preparando. O podcast de no máximo 10 minutos leva 1 hora no mínimo”, comentou. Para entender como usar as ferramentas, o professor contou com tutoriais preparados pela própria escola, e, principalmente, com a ajuda de professores. “Aprendi na tora, estudando, vendo videoaula dos amigos”, definiu. “A gente ligava um pro outro, fazia videochamada”, contou.

Por conta da mudança súbita na forma de lecionar, também investiu em novos equipamentos. “Quando começou o mês de março, assim que começou o isolamento social, começamos a pesquisar que aparelhos e programas que não tinha. Comprei uma mesa digitalizadora e uma webcam nova”, falou.

Adaptar-se à nova realidade tão rapidamente não foi processo fácil. Colega de ofício, o professor de Língua Portuguesa Lêidson Macedo, 57 anos, resumiu a experiência como desesperadora. "Era uma sensação de que não ia dar conta de tudo. Sair das atividades no dia 18 de março e duas semanas depois estar apto a lidar com tecnologias que não estava não foi simples", disse.

"Foi desafiador. Mesmo já trabalhando com tecnologia, a gente não dominava por completo. De uma hora para outra, em menos de dois meses, a gente tomou outro rumo na nossa vida profissional."

Agora, Lêidson Macedo encara o desafio com maior confiança. "Cada dia estamos aprendendo novas coisas. Hoje já me sinto na tela do computador com tranquilidade, coisa que não acontecia nos primeiros dias", admitiu.

Uma das estratégias adotadas pelo professor foi pedir ajuda a outros professores e aprender com eles. "Foi necessário também buscar informações na internet, aprender outras plataformas de que a escolha dispunha, pedir ajuda aos colegas, para que a gente pudesse apresentar o melhor da aula para o aluno."

O professor não encara os percalços como uma dificuldade, mas sim como uma motivação. Ele avalia, inclusive, que o período de aprendizagem servirá adiante. "É provável que, quando voltemos, as nossas aulas presenciais assumam um perfil diferenciado daquele com o qual lidávamos antes da pandemia", levantou.


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