Há 18 anos, a associação Doutores da Alegria inunda de cor os corredores cinzas de hospitais do Recife, interrompe com risadas os ruídos de aparelhos médicos e devolve esperança às famílias em meio ao período tenso do tratamento de uma doença. Com a necessidade do isolamento social em 2020 e a interrupção das visitas presenciais, a instituição precisou se reinventar e, com auxílio da tecnologia, conseguiu preservar as intervenções, que hoje acontecem por meio de chamadas de vídeo.
Duas vezes por semana, o "Plantão Besteirológico" acalenta pacientes das pediatrias dos hospitais da Restauração, Barão de Lucena, Oswaldo Cruz e Procape, e do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). As visitas acontecem individualmente por meio de tablets com internet, entregues por profissionais de saúde às crianças de cada leito das enfermarias. Do outro lado da tela, há dois palhaços prontos para diverti-las. Após cada atendimento, o equipamento é higienizado.
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Uma das pacientes da "palhaçoterapia" no Hospital Oswaldo Cruz é Ângela Gabriella de Morais, de 10 anos, que luta há quase três anos contra o linfoma não-Hodgkin, um tipo de câncer nas células do sistema linfático. A mãe, Ana Cláudia, acredita que as visitas dos Doutores da Alegria foram fundamentais para a recuperação da filha, e que as realizadas online têm sido tão importantes quanto as presenciais. "Me sinto mais aliviada porque a quimioterapia é um tratamento pesado, e isso ameniza muito a dor. Eles fizeram com que ela nunca ficasse entediada no hospital", conta.
Só em 2020, foram feitas 1.493 ligações na capital pernambucana. Para o coordenador da unidade Recife da associação, Arilson Lopes, o resultado foi positivo, apesar de "nada substituir o trabalho presencial". "Chegar ao hospital por meio do atendimento virtual foi uma maneira de fazer com que o trabalho acontecesse de forma parecida com o que a gente já fazia lá, apesar da mediação pelo equipamento. Usar a tecnologia a favor do lúdico tem sido nosso desafio e tem sido um exercício muito rico. A gente está conseguindo aproveitar o que as ferramentas nos oferecerem a favor do trabalho do palhaço", afirma.
Ainda nas primeiras semanas da suspensão das visitas presenciais, antes das ligações serem instituídas, os palhaços criaram a ação "Delivery Besteirológico", que consistia na produção de vídeos reproduzidos para as crianças nos leitos. Os conteúdos, inesperadamente, romperam as barreiras dos hospitais a partir da publicação nas redes sociais. Hoje, a coletânea de 250 vídeos - formada por festivais, lives, auto de natal e uma websérie - já atingiu em torno de 13,7 milhões de pessoas em todo o País.
O ator Marcelino Dias, de 55 anos, já incorpora o alter ego do palhaço Micolino desde a chegada dos Doutores da Alegria ao Recife. Com a interrupção das atividades no hospital, o artista montou um pequeno estúdio na própria casa para fazer as gravações, e revela que as interações com as crianças estão sendo importantes até mesmo para ajudá-lo a passar pelo momento de quarentena. "É um alento, é como se a gente estivesse do lado do paciente, que muitas vezes também está recluso e afastado do convívio social”. Ele afirma não ter sentido diferença na interação com os pacientes.
"Criança nunca deixa de ser criança. Se nada a incomodar em termos físicos, ela vai interagir e reagir como qualquer outra, por isso que nosso trabalho é tão potente", completa.
Luciana Pontual, conhecida como palhaça Dra. Svenza quando coloca o nariz vermelho e a maquiagem no rosto, comemora o uso da tecnologia como ferramenta para ajudar o próximo. "No começo era bem difícil imaginar a gente atendendo de forma virtual. Eu ficava pensando se daria certo, porque a base do nosso trabalho é o improviso, não é um espetáculo. As relações se dão a partir do encontro com a criança, que é um expectador muito próximo. A construção é íntima e construída gradativamente. Trazer isso para o virtual e dar certo é ver o poder da arte. Foi bom perceber que, mesmo por uma tela, a distância não fez com que a potência do trabalho deixasse de existir", confessa.
Agora, por vídeo, eles animam a pequena Maria Eduarda da Silva, de 4 anos, que encerrou o tratamento contra a leucemia no último dia 4 de março após mais de dois anos de idas e vindas ao HUOC, mas segue frequentando o hospital todas as semanas para checagem. "No começo, ela chegou a ficar três meses internada. Era muito difícil. Desde o princípio ela recebe os palhaços, ela adora. Também ajuda muito no tratamento, porque ela recebe uma alegria no momento que está mais debilitada. Mesmo online, nada mudou, ela conversa bastante com eles", relata a mãe, Jucilene Maria da Silva.
Para a oncologista pediátrica Vera Morais, presidente do Grupo de Ajuda à Criança Carente com Câncer de Pernambuco (Gac-PE), localizado em Santo Amaro, Centro da cidade, a inserção dos Doutores da Alegria no ambiente hospitalar por meio de tablets foi "uma ideia fantástica". "Estamos alinhados com a associação, já que nossa missão é humanizar a assistência aos pacientes atendidos dentro da instituição, reduzindo dor e sofrimento. As crianças são felizes, mas o câncer é uma doença devastadora, que não se sabe se vai haver melhora. Tenho enorme gratidão aos doutores por terem tido esse insight para reinventar [as visitas]", afirma.
A expectativa para 2021, caso o acompanhamento não volte a ser feito de forma presencial, é de que a palhaçoterapia por vídeo-chamada chegue a mais crianças do que no último ano, e leve sorrisos e diversão durante as estadias que estão ainda mais solitárias nos hospitais do Recife, ainda que seja através das telas. Tudo isso com o intuito de, segundo o palhaço Micolino, fazer com que "a arte continue sendo uma ferramenta de transformação".