URBANISMO

Abandonado e vendido pelo Estado, antigo Centro Cultural do Pina, no Recife, é reocupado pela Comunidade do Bode

O Centro, que durante duas décadas proporcionou educação, cultura e lazer para a população, se tornará um empreendimento imobiliário residencial e empresarial. Comunidade do Bode, na Zona Sul da capital pernambucana, reivindica o espaço

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Katarina Moraes

Publicado em 04/02/2022 às 8:00 | Atualizado em 05/02/2022 às 14:28
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Uma verdadeira força-tarefa na Comunidade do Bode, no Pina, na Zona Sul do Recife, se reuniu no último final de semana para reocupar o antigo Centro Social Urbano (CSU) do bairro. O mato chegava na altura dos ombros. O piso estava repleto de metralhas. A fiação elétrica já não existia mais. Pouco a pouco, coletivos e vizinhos coloriram as paredes e retomaram as atividades no local - paralisadas pelo governo do estado há mais de 20 anos sem explicações. No entanto, o espaço, que durante décadas funcionou gratuitamente como o único suporte cultural, educacional e de lazer para a comunidade, foi vendido para a iniciativa privada e deve, em breve, tornar-se um empreendimento imobiliário.

O movimento é mantido por meio de doações e voluntários advindos do Coletivo Pão e Tinta, do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Coletivo Novo Pina, da Palaffit, da Aceleradora Social, da Coletiva Cabras, da Comissão de Advocacia Popular da OAB (CAP) e da Livroteca Brincante do Pina. O pedido é que o espaço do CSU, agora nomeado de Centro Urbano do Pina, seja devolvido. “Aqui estava ficando deteriorado e começamos a conversar com coletivos da comunidade que sentem falta de um espaço cultural no Bode, que é um lugar que respira cultura. Nos organizamos ao entender que esse lugar precisava voltar a ser do povo”, disse Pedro Stilo, do Coletivo Pão e Tinta.

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"Sem esse espaço, tínhamos que andar até a praia para praticar esportes e lazer. Hoje os espaços de teatro, música e poesia não existem nessa comunidade", disse Pedro Stilo, do Coletivo Pão e Tinta - Guga Matos/JC Imagem

No primeiro dia de ocupação, a Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) foi averiguar “uma suposta invasão no terreno”, e constatou que se tratava de uma área privada. Por nota, a corporação diz que o “proprietário compareceu ao local, apresentando documentação de propriedade do imóvel”, mas que o “grupo de invasores era composto por cerca de cem pessoas, que contavam com o apoio presente de três advogados”. Por fim, a PMPE disse ter orientado o dono do terreno a prestar o devido registro na Delegacia de Polícia Civil (PCPE), a fim de buscar a solução pelos caminhos legais, e que não houve registro de confronto."

Histórico

O CSU esteve ativo até o início dos anos 2000, quando deixou de ser gerido pelo poder público sem que um outro espaço fosse aberto. Moradora da região desde que nasceu, Mila Barros contou que o centro faz parte de sua “memória afetiva”. “Eu estudava em um colégio de bairro aqui perto, e lembro de fazer aulas de educação física e apresentações artísticas no Centro. A maioria das escolas de bairro daqui são pequenas e recorriam a esse espaço. Ao ser fechado, houve uma perda cultural. A gente não tem nenhum outro espaço público aqui com um palco desse, por exemplo. São 15 salas desativadas que antes serviam à população.”

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O Centro Social Urbano do Pina faz parte da memória afetiva de Mila Barros, moradora da região - Guga Matos/JC Imagem

Em 2005, o Instituto Brasileiro de Diabetes (Ibradi), uma entidade sem fins lucrativos que atendia e dava assistência gratuita a cerca de 100 pacientes por mês, passou a utilizar o local. As atividades duraram até 2018, quando o Ibradi recebeu uma “ordem de despejo”, segundo a presidente e endocrinologista Geísa Macedo. “Disseram que tinham vendido o terreno. Nós dávamos assistência da melhor qualidade, com médicos, nutricionistas, grupos educativos e serviços de prevenção, mas nada foi suficiente. A gente teve que retirar tudo e não fizeram nada no lugar até hoje. Voltou a ser o que era antes, e nós estamos sem um lugar para ir”, pontuou.

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Espaço possui palco, quadra e salas para atividades culturais e educacionais - Guga Matos/JC Imagem

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Antes mesmo do despejo acontecer, o terreno do CSU foi cedido, em junho de 2013, como indenização à empreiteira que era proprietária de imóvel na Várzea, Zona Oeste da cidade, que foi declarado pelo Estado como “de interesse social” para construção de “empreendimento habitacional, implantação de projetos de urbanização e de regularização fundiária de interesse social” - neste local, é prevista a construção de um habitacional para a Comunidade 21 de Abril, com 352 apartamentos.

Novo uso

Para o terreno do Centro Social do Pina, a reportagem do JC identificou, por meio de pesquisa no Portal de Licenciamento da Prefeitura do Recife, que há um projeto imobiliário já aprovado. O empreendimento será de uso misto, ou seja, abrigará área habitacional e comercial, com 22 pavimentos e 69 unidades (como lojas ou apartamentos). A licença para construção, com validade até 2025, já autoriza o início das obras desde já.

 

REPRODUÇÃO/LICENCIAMENTO
Planta de projeto imobiliário aprovado para área do antigo Centro Social Urbano (CSU) do Pina - REPRODUÇÃO/LICENCIAMENTO

Contra a venda, o secretário geral do Coletivo Novo Pina, Alyson Fonseca, ingressou com uma ação no Ministério Público de Pernambuco (MPPE) em 2020, que foi arquivada após o entendimento da instituição de que não houve ilegalidade na venda do terreno. Até hoje, o representante cobra por uma contrapartida à população do Bode, que, de acordo com ele, “só perdeu” nesse processo. “O que se questiona é a necessidade do retorno para a sociedade, que não houve. O Bode tem várias deficiências. Hoje não temos centro social, nem mesmo escola para ensino médio”, alegou.

O advogado e pesquisador em planejamento urbano Ítalo Santana explica que, de fato, este é um processo legal e comumente usado para quitar dívidas públicas, mas, segundo ele, “a lei também afirma que toda ação do Estado sempre tem que atender aos interesses coletivos”. “Estamos falando de um imóvel que tinha interesse social, que atendia à sociedade local. [A venda] é legítima do ponto de vista jurídico, mas existe uma demanda social que precisa sempre ser calculada nessas ações”, afirma.

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Metralhas e lixo foram tirados do Antigo Centro Social Urbano do Pina, na Zona Sul do Recife. - Guga Matos/JC Imagem
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Reocupação Centro Pina. Antigo Centro Social Urbano do Pina é reocupado por movimentos sociais e pela Comunidade do Bode, no Pina, na Zona Sul do Recife. - Guga Matos/JC Imagem

Perda cultural

Mesmo não sendo uma área de proteção, o perímetro onde o CSU fica é rodeado pela Zona Especial de Interesse Social (Zeis) da Comunidade do Bode, característica que garante em certo grau a permanência de moradia da população de baixa renda em certas áreas do Recife. Por isso, para a arquiteta e urbanista Iana Ludermir Bernardino, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o ideal era que “tivesse sido feita uma reabilitação desse centro cultural” para a população.

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Ocupação é formada por membros do Coletivo Pão e Tinta, do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Coletivo Novo Pina, da Palaffit, da Aceleradora Social, da Coletiva Cabras, da Comissão de Advocacia Popular da OAB (CAP) e da Livroteca Brincante do Pina - Guga Matos/JC Imagem

“Se esse era o último terreno disponível nas proximidades dessa Zeis e se é uma comunidade com carência de equipamentos, ele deveria cumprir a função social. Essa nova habitação e esse empresarial vão ser voltados a outra demanda, para uma população que vai ter a capacidade de comprar esse apartamento ou loja, e provavelmente a Zeis não vai ter ganho com esse empreendimento. Pode ser utilizada como mão de obra por um período, gerando empregos, mas não vai ser beneficiada a médio e a longo prazo”, defendeu.

A defesa de Jéssica Jansen, da Comissão de Advocacia Popular da Ordem de Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), é de que “a constituição garante que as pessoas devem ter acesso à educação, esporte, cultura e ao lazer, e o imóvel cumpria essa função”. “O Pina ficou carente desse tipo de atividade. Movimentos sociais e culturais tentam suprir essa lacuna para o bairro, mas sabemos que isso tem que ser garantido pelo poder público. Esse imóvel estava sucateado. Era um serviço que servia a várias pessoas e foi retirado de uma forma arbitrária”, assinalou.

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Advogada Jéssica Jansen, da Comissão de Advocacia Popular da Ordem de Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), defende manutenção do espaço para a comunidade - Guga Matos/JC Imagem

Posicionamento

A reportagem tentou contato com a imobiliária responsável pelo novo empreendimento no terreno do CSU, mas não obteve resposta. Já o Governo do Estado, por meio da Secretaria de Administração, absteve-se de dar um posicionamento sobre o processo de venda do espaço, afirmando apenas que “o referido imóvel não pertence ao patrimônio do Estado”. Segundo os movimentos sociais, a Casa Civil de Pernambuco entrou em contato com o grupo a fim de marcar uma mesa de negociação sobre o espaço, mas até agora não há reunião agendada.

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Ocupação é mantida por meio de doações - Guga Matos/JC Imagem
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Ocupação é mantida por meio de doações - Guga Matos/JC Imagem

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