“Eu diria que a fé cristã tem uma dimensão política, no sentido de que quem é cristão é uma pessoa que está no mundo com o compromisso com Jesus Cristo”. A frase dita pelo próprio padre Reginaldo Veloso em entrevista no último ano neste JC revela um pouco de quem era este homem que encontrou na religião uma forma de mudar vidas para além dos muros das paróquias — e o fez.
Padre, mas não só isso. Líder, mas não só isso. Militante, mas não só isso. Mas ao povo e a Deus, tudo isso. E é por isso que sua partida nesta quinta-feira (19), causada por complicações de um câncer na bexiga, deixa uma lacuna na história do catolicismo de Pernambuco, que ele ajudou a escrever e a defender.
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Alagoano de São José da Lage, nasceu em 3 de agosto de 1937 e veio ao Recife em 1951 fazer um curso ginasial e estudar filosofia no Seminário da cidade. Em 1958, foi para Roma, na Itália, onde estudou Teologia e História da Igreja e foi ordenado padre. Na capital pernambucana, em 1968, assumiu a Paróquia de Santa Maria, no bairro da Macaxeira, durante dez anos.
Foi ao se tornar pároco de Nossa Senhora da Conceição, em 1978, que Reginaldo pôs em prática o cristianismo que acreditava — um pontapé para a mudança de vida, em todos os sentidos. Do alto do Morro, na Zona Norte do Recife, desenvolveu um movimento de luta por justiça social, incentivando os moradores a reivindicarem acesso à água, habitação, transporte e outros direitos negados.
Reginaldo ainda fez parte do Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC), e se destacou nos movimentos de oposição à ditadura militar, período no qual foi processado pela Lei de Segurança Nacional.
O trabalho chamou atenção do então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara (1909-1999), de quem se tornaria amigo, mas desagradou o posterior, o arcebispo dom José Cardoso Sobrinho, pertencente à ala mais conservadora da Igreja e contrário à teologia da libertação proclamada pelo pároco.
Reginaldo foi um dos padres afastados por Cardoso no período em que esteve à frente da Arquidiocese, indignando fiéis que o admiravam. Nesse contexto, nasceu a Igreja Nova, um movimento que buscava proteger o legado de Dom Hélder. Uma das líderes foi a aposentada Elizabeth Barbosa, de 78 anos, que vê Reginaldo como um “marco na Igreja de Olinda e Recife”.
“Ele foi um profeta em nossa vida. Profeta não é quem prevê o futuro, mas quem faz uma leitura da realidade que nos cerca à luz do evangelho. Foi um grande defensor dos trabalhadores, uma pessoa doce, maravilhosa e firme nos ideais de uma igreja libertadora e de uma pátria livre, enquanto vivíamos períodos muito escuros”, contou.
A Arquidiocese precisou entrar na Justiça pedindo pela reintegração da posse das terras, porque Reginaldo, com apoio da população local, se recusava a deixar o comando da paróquia. Até a Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) subiu o morro para forçar sua saída. À época, a história foi notícia durante semanas na imprensa pernambucana.
Mesmo assim, não se calou. Fora do comando da igreja, Reginaldo continuou acompanhando pequenas comunidades no entorno do Morro da Conceição, prestando assessoria a movimentos, a dioceses e a congregações religiosas, além de fazer reuniões pedindo pelo afastamento do então bispo e "uma igreja que nascesse da força do espírito no meio do povo". Mais tarde, casou e teve um filho, João José, hoje com 27 anos.
Apesar da expulsão em 1989, a Igreja reconheceu, posteriormente, os feitos do líder. A Arquidiocese o homenageou nesta sexta-feira (20) por meio de nota: “que seja concedido a Reginaldo Veloso cantar diante do Senhor Ressuscitado”. Já a paróquia do Morro expressou "eterna gratidão pela sua missão e atuação com o povo de Deus".
Recentemente, o padre Reginaldo — título que, oficialmente, não tinha mais, mas assim era considerado por uma multidão — recebeu o título de cidadão pernambucano da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Em 2020, virou um documentário, intitulado “Reginaldo Veloso: o Amor mais profundo”, sob direção da pernambucana Daniela Kyrillos. O filme está disponível no YouTube e pode ser assistido neste link.
Ainda hoje, suas composições entoam em diferentes congregações da cidade, seja a canção “na quinta feira, Jesus com seus discípulos de Betânia para Jerusalém, fazer a Páscoa, Jesus com seus amigos e padecer a favor do nosso bem”, ou a “lá vem a barra do dia! Lá vem o filho de Maria! A vida vence a morte, para nossa alegria!”, que toca na Festa do Morro ano após ano.
"Ele deixou um grande legado. Deixou de exercer o sacerdote, mas continuava como um grande cristão, ajudando as pessoas na promoção da dignidade humana e a se encontrarem com Deus através das comunidades eclesiais de base, onde ele ajudou a recuperar auto estima e dignidade humana", afirmou o Vigário Geral Monsenhor Luciano José Rodrigues Brito.