É uma conta difícil de fechar: de um lado, milhares de famílias que vivem em áreas de risco pedem socorro ao poder público para minimizar ou acabar com a ameaça de moradia construída próxima ou em cima de barreiras. Do outro, estruturas de Defesa Civil que não conseguem atender o tamanho e a urgência das necessidades da população, associado ao controle urbano incipiente para barrar a ocupação desordenada. Para agravar, eventos climáticos como os temporais que caíram no Estado nas últimas semanas aumentam o perigo.
A maior tragédia vivida em Pernambuco nas últimas décadas matou 129 pessoas, das quais 93% (120 óbitos) morreram soterradas em deslizamentos de barreiras. Todos os soterramentos com mortes ocorreram em quatro cidades da Região Metropolitana: Recife (50), Jaboatão dos Guararapes (64), Camaragibe (07) e Olinda (06), segundo levantamento da Secretaria de Defesa Social do Estado.
PESQUISA
As queixas dos moradores em relação à atuação da Defesa Civil nos municípios são recorrentes. Um problema nacional, conforme pesquisa feita ano passado pelo governo federal para identificar as capacidades e necessidades municipais em proteção e defesa civil.
Entre as principais dificuldades estão equipes pequenas (59% têm somente uma ou duas pessoas), falta de dinheiro (só 26% possuem orçamento próprio) e condições de trabalho deficientes (30% não possuem computador e 67% não têm viatura).
Cenário que reflete no trabalho das equipes. Indagados sobre a capacidade de atuarem em um desastre, 40% afirmaram que se sentem pouco capacitadas para agirem durante a ocorrência. Sobre a identificação e o mapeamento de áreas de risco, 39% responderam, no País, que se acham pouco capacitadas para essas tarefas.
No recorte de Pernambuco, em relação à estrutura, 28% dos entrevistados disseram que a principal dificuldade é não ter recursos financeiros; 22% é a falta de equipamentos e
19% é a ausência de recursos humanos.
DOR
No bairro da Linha do Tiro, Zona Norte do Recife, as lonas tão aguardadas por moradores foram colocadas na barreira próxima à casa que o adolescente Lucas Daniel Nunes, 13 anos, morava com a família, somente após a morte dele.
O garoto morreu soterrado pelo deslizamento de uma encosta na última terça-feira (07). Sua mãe, irmão e padrasto estavam no mesmo imóvel mas sobreviveram sem grandes ferimentos. Dois vizinhos de outras duas residências também destruídas estão hospitalizados em estado grave.
"Alguém poderia ter feito alguma coisa. Morava nessa casa há 20 anos. Nunca tinham colocado lona na barreira. A Defesa Civil vinha e dizia que não tinha perigo iminente, que a vegetação seguraria a barreira. Foi preciso meu filho morrer, minha família entrar para estatística para que no mesmo dia colocassem lona", lamenta a mãe de Lucas, Elivaneide Nunes, 39.
"Em 1995, Jarbas Vasconcelos era prefeito do Recife. Veio aqui, viu a barreira com um secretário e disse que ia ajeitar. Até hoje ele e os outros prefeitos não fizeram nada", comenta o avô de Lucas, Elisiário Silva, 74.
POUCOS INVESTIMENTOS
Ano passado, somente 1,48% da despesa anual da Prefeitura do Recife foi investido em ações de gestão de risco a encostas e alagados. Apenas R$ 80 milhões dos R$ 5,3 bilhões arrecadados pelo tesouro municipal.
A gestão tem mapeado um total de nove mil pontos críticos de risco. Vale destacar que 67% do território do município está situado em áreas de morro, onde vivem cerca de 600 mil moradores.
"O gargalo é, de fato, o tímido orçamento das instituições de defesa civil em suas esferas locais. Por outro lado, a ausência de intervenções com obras estruturais acarreta diretamente no aumento da vulnerabilidade, e consequentemente, na ocorrência de casos como o que testemunhamos recentemente na Região Metropolitana do Recife", observa o doutor em geociências e professor da Universidade de Pernambuco (UPE) João Allyson Ribeiro.
"Diversos estudos indicam que a frequência de eventos climáticos extremos tende a aumentar. O que imputa ao poder público a adoção de políticas de ações preventivas, estratégicas, coordenadas e pautadas no conhecimento científico, com definições claras de probabilidade de ocorrência e vulnerabilidade dos sistemas socioambientais", ressalta o professor da UPE.
Secretário-executivo da Defesa Civil de Pernambuco, Leonardo Rodrigues diz que o trabalho é conjunto. "Não é só estruturar a Defesa Civil em cada cidade. Porque não adianta colocar uma boa equipe se não houver outras esferas do poder municipal envolvidas em ações estruturais e de prevenção. Tem relação com ordenamento territoral urbano, com saneamento, saúde, educação", enfatiza Leonardo.
EQUIPES
Na capital, a Secretaria Executiva de Defesa Civil tem 400 profissionais. Em Olinda são cerca de 180 servidores, conforme a gestão municipal. As prefeituras de Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe foram contactadas mas não informaram seus efetivos.
Com as últimas enchentes, as prefeituras reforçaram suas equipes. Mas na avaliação de quem está no dia a dia, a rotina de trabalho é de escassez de funcionários.
"A última vez que houve concurso para Defesa Civil do Recife foi em 2008. São só dois geólogos para trabalho de campo, por exemplo. A prefeitura prefere terceirizar serviços, onerando os cofres públicos. Não há computador suficiente para os analistas e técnicos produzirem os laudos", diz o diretor do Sindicato dos Servidores Municipais do Recife (Sindsepre), Geferson Fernandes.
"Infelizmente morreram muitas pessoas nessas últimas chuvas. É reflexo da falta de ações mais efetivas", comenta Geferson.
ESTRUTURA
O secretário de Defesa Civil do Recife, Cássio Sinomar, garante que há boa estrutura na capital. "Desde que cheguei na prefeitura, em 2014, os investimentos aumentam. Temos técnicos especializados, engenheiros, assistentes sociais, psicólogos concursados. Há equipamentos, conseguimos ir nos locais sempre que somos solicitados ou quando percebemos a necessidade de vistorias", assegura o secretário. Ele diz que anualmente são realizadas cerca de 50 mil vistorias.
Em Olinda, 52% da população vivem em área de risco. Há 3 mil pontos de risco, sendo 122 considerados mais críticos. "Nossa meta é atender bem todas as ocorrências. Mas em situações como a que tivemos recentemente, por exemplo, foi humanamente impossivel", afirma o secretaria Executivo de Defesa Civil de Olinda, Carlos d'Albuquerque. "Temos ações preventivas e estruturantes o ano todo", ressalta.
POPULAÇÃO
Os gestores destacam que não adianta ter uma boa estrutura de defesa civil se não houver a participação da população. "Os moradores fazem parte do processo. Temos mapeadas as áreas de risco, emitimos os alertas, orientamos a saírem. Mas as famílias têm que colaborar. É sempre um ponto de dificuldade a resistência em desocuparem os imóveis", comenta o secretário de Olinda.
Outro caminho é investir em educação, com ações nas escolas e campanhas educativas. Alunos do 9º ano do ensino fundamental de cinco escolas municipais de Olinda participam de atividades para aprenderem a identificar os riscos de uma barreira. No Recife, a Defesa Civil retomou as ações educativas nas escolas, que haviam sido suspensas devido à pandemia.
A comunicação com os moradores é outro ponto importante. Na véspera da maior chuva que houve no Recife, dia 27 de maio, a prefeitura enviou SMS para 32 mil pessoas alertando sobre a possibilidade de chuvas fortes e orientando que procurassem locais seguros.
Em tempo de redes sociais, a mensagem de texto pelo celular é defendida pela gestão como eficaz. Um dos argumentos é que muitas pessoas não dispõem de pacote de dados ou sinal de internet, sobretudo aquelas que vivem em pontos mais altos da cidade.