O dia a dia das ocupações em prédios abandonados no Centro do Recife
Mais de 520 famílias vivem hoje em quatro edifícios - até então abandonados - no coração da capital pernambucana, expondo problemas a emergência habitacional que a cidade enfrenta
Do lado de fora, é difícil acreditar que 350 famílias dormem no antigo prédio do Conselho Regional de Contabilidade de Pernambuco (CRC-PE), na Rua da Soledade, no Bairro da Boa Vista. A edificação, constituída apenas por térreo e dois andares, não possui divisões ou salas, apenas vãos hoje ocupados por dezenas de colchões, postos por quem não têm o acesso universal à moradia garantido.
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Lá está a ocupação Leão do Norte, do Movimento de Luta por Teto, Terra e Trabalho (MLTT), que reuniu pessoas prejudicadas pelas chuvas do inverno deste ano no Grande Recife, que deixou milhares de desabrigados e desalojados na Região Metropolitana.
Essa é uma das quatro ocupações ativas atualmente em imóveis que até então estavam abandonados no Centro da capital pernambucana. São mais de 520 famílias vivendo nesses prédios que tiveram a renda ou a casa afetada pela crise agravada pela pandemia da covid-19 ou pela emergência das chuvas.
Gente como Alex Wanderson, de 45 anos, que foi para lá com a esposa e o filho de 15 anos. “Eu morava no Totó, de aluguel, mas perdi tudo nas chuvas e ainda fiquei desempregado. Não tivemos assistência nenhuma do governo”, disse.
As instalações do prédio são precárias. No primeiro andar, uma enorme rachadura corta o chão do espaço de um lado a outro. A energia elétrica foi instalada com improviso, e não há saneamento básico no local, tampouco chuveiros. Os moradores usam baldes para dar “descarga” nas privadas dos banheiros, e tomam banho com o auxílio de vasilhas.
“Aqui dormem quatro pessoas”, apontou a coordenadora da ocupação, Salete da Silva, 51, para uma espuma velha coberta por um lençol. Em outros casos, nem isso: sem colchões, famílias passam a noite em tábuas ou lençóis. “Mas pelo menos nos sentimos mais seguros por termos um teto”, disse ela.
Mesmo nessas condições, os moradores mantêm a organização. “Aqui ninguém pode andar sem camisa, beber ou falar palavrão. Os casais também não podem ter sua intimidade, porque tem risco de uma criança chegar e ver. Todos respeitam as regras e vivemos muito tranquilos”, disse Salete.
Os ambientes são limpos e decorados, na medida do possível. As paredes, que estão desgastadas pelo efeito do tempo, ganharam grafites, frases motivacionais e avisos. “Mantenha o portão fechado”, dizia um deles. “Proibido entrar na cozinha sem autorização”, afirmava outro.
É nessa cozinha que sai a alimentação para todos os moradores. No dia da visita do JC, era preparada carcaça de galinha - apenas bico, pé e pescoço temperados com colorau. Quando há feijão, só é cozinhado no fogo à lenha, para economizar o botijão de gás que, na última semana, acabou e ficou três dias sem ser reposto.
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“Ocupação é um ato de denúncia; que aquelas pessoas precisam do direito à moradia, mas não queremos que essas famílias vivam para sempre assim. Queremos que o prédio seja desapropriado para que possamos construir moradia para essas famílias aqui, por meio do Minha Casa, Minha Vida”, afirmou o coordenador geral do MLTT, Davi Lira.
Além do imóvel do CRC-PE, outros três estão ocupados no Centro: os antigos prédios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também no bairro da Boa Vista, do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Hotel Nassau, ambos em Santo Antônio.
A ocupação do Hotel Nassau é a mais recente - situado na Rua Larga do Rosário, o edifício virou moradia de 50 famílias em 5 de dezembro, sob a coordenação de dois movimentos sociais: o Movimento de Luta nos Bairros (MLB) e o Movimento de Luta e Resistência pelo Teto (MLRT).
“Fizemos essa parceria para fortalecer a moradia no Centro e dar uma função social ao prédio, que não tinha uma função. Eram famílias que moravam de aluguel, mas que não tinham mais condições de pagar. Então, fizemos o trabalho de base e as trouxemos”, contou Giancarlo dos Lírios, coordenador estadual do MLRT no Estado.
A ocupação difere das demais; visto que a estrutura do hotel, fechado no início dos anos 2000, permanecia intacta, com paredes ainda bem pintadas, quartos com mobília e banheiros equipados. “Isso aqui para mim é luxo”. Foi o que Flávia dos Santos, de 47 anos, disse ao, pela primeira vez na vida, considerar que vive com dignidade.
Ela morava em um barraco na Comunidade do Papelão, no Coque, Zona Sul do Recife, mas, desempregada, não conseguiu sustentar o pagamento do aluguel. “Vim para cá porque só com o Auxílio Brasil eu precisava cuidar de três filhas sozinha e pagar aluguel, água e luz. Ou comia, ou pagava aluguel”, disse.
Ao chegar no local, um mutirão de limpeza foi feito pelos moradores - já que, após cerca de 20 anos fechadas, as instalações do hotel estavam repletas de poeira, sujeira e vestígios de roedores. Entre duas e três famílias se dividem em cada um dos quartos dos sete andares do hotel, que está sem ligação de água e de energia. Os moradores se dividem em grupos de trabalho: alimentação, segurança, limpeza, etc, para manter a ordem no local.
O ciclo de ocupações mais centrais e de grande visibilidade na capital pernambucana foi iniciado em 2018, com a Ocupação Marielle Franco, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Por cerca de um ano, 200 famílias viveram no antigo Edifício SulAmérica, na Praça da Independência, antes da mobilização ser desfeita por falta de estrutura.
Quatro anos depois, o número de famílias que ocuparam edifícios centrais mais do que dobrou - segundo dados dos próprios movimentos que os organizam. A quantidade expõe as deficiências dos poderes públicos em garantir o direito à moradia digna e denunciam a quantidade de imóveis sem uso na região.
Déficit habitacional longe de ser suprido
Pernambuco conta com um déficit habitacional superior a 240 mil casas - ou seja, 7,7% da população total do Estado não tem onde morar ou mora em condições de extrema precariedade. O percentual, que nem mesmo engloba pessoas em situação de rua, sobe para 8,3% no Grande Recife, com cerca de 112 mil famílias nessa situação.
Os dados, coletados pela Fundação João Pinheiro, no entanto, foram colhidos em 2019 - e já não devem mais expressar a emergência habitacional que a região possui. Mesmo assim, apontam que a quantidade de famílias que estão nesses prédios é apenas uma amostra da quantidade de famílias sem um teto digno na RMR.
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Enquanto isso, os programas de habitação social são praticamente restritos às ações do governo federal, que, nos últimos anos, têm restringido a verba para ele. A proposta de Orçamento de 2023 do governo Jair Bolsonaro (PL) cortou 93% da verba para o programa Casa Verde e Amarela, reservando apenas R$ 82,3 milhões para ele, a menor desde a criação do Minha Casa, Minha Vida, de 2009.
A nível municipal, as novas moradias têm sido escassas. O Recife tem cinco habitacionais em construção atualmente - todas as obras herdadas de gestões passadas - que, juntos, terão 1.292 apartamentos. O resultado da conta que não fecha é uma cidade repleta de moradias irregulares, em áreas de risco e tomada por ocupações.
“A produção de moradia foi paralisada, tivemos queda na renda das famílias e aumento no custo de vida. Essas pessoas não moram ali porque querem, mas porque não têm outra alternativa. Não existe programa municipal e estadual de moradia, e o federal está paralisado”, pontuou a coordenadora de incidência política da Habitat Brasil, Raquel Ludermir.
A presidente da comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Erika Lócio, explicou que, pela Constituição Federal, a falta de habitação não justifica a ocupação de um imóvel: que é considerada ilegal independente dele ser público ou privado. Ainda, que é dever do poder público conceder moradia a quem não tem.
“A garantia à propriedade privada é um dos dispositivos que a própria Constituição traz. Não há uma posição técnica para legitimar essas ocupações, tanto que os proprietários, sejam pessoas jurídicas, direito público ou privado, podem demandar uma reintegração de posse”, disse ela.
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu despejos e desocupações, em razão da pandemia de covid-19, que foi válida até 31 de outubro deste ano. Agora, podem voltar a acontecer, desde que feitas sob conciliação, segundo Erika. “Agora, a única exigência é que sejam retomadas gradativamente, a partir do momento que os tribunais façam um mutirão para que haja uma conversa”, afirmou.
Estoque de imóveis sem uso: uma alternativa
A especialista explicou, por outro lado, que a ocupação pode ser posteriormente legalizada, já que a lei autoriza que as pessoas tenham direito a adquirir a propriedade por usucapião após certo período de tempo ocupando-a, em caso de um espaço privado. No caso dos prédios públicos, o ente responsável pode cedê-los à comunidade.
Dos prédios ocupados, somente o Hotel Nassau privado, que pertence à Empresa Nacional de Hotéis Limitada e um débito de R$ 3,2 milhões em Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), segundo mostra o Portal de Finanças da Prefeitura do Recife. O imposto municipal é a principal fonte de recursos para executar intervenções urbanas públicas na cidade.
Ele foi listado como um dos 44 prioritários para ser transformado em imóvel especial de interesse social pelo Plano Diretor Municipal de 2020. Dois anos após aprovação da lei que rege o crescimento urbanístico da cidade, no entanto, nenhum deles foi transformado.
Ele é apenas um dos tantos imóveis abandonados no Centro. Ao mesmo tempo, um estudo da Habitat Brasil de 2018 mostrou que, só em Santo Antônio, 42 imóveis estavam desocupados ou subutilizados. Em toda a região, a ociosidade desses prédios têm gerado vazios urbanos e a falta de movimentação na região, que geram outros problemas, como a insegurança pública.
O Estatuto das Cidades, de 2001, que regulamenta a política urbana nacional, também previu instrumentos para obrigar os proprietários a darem uso aos imóveis. Somente na gestão João Campos (PSB), entretanto, o Recife regulamentou alguns dos mais importantes para tornar essa política efetiva: o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC), IPTU Progressivo e Desapropriação-Sanção.
Basicamente, o instrumento obriga os proprietários a parcelarem, edificarem ou utilizarem seu imóveis, fixando um prazo para que isso aconteça. Caso esse período estipulado não seja observado, é então iniciada a cobrança do IPTU Progressivo, podendo chegar ao que se chama de ”desapropriação-sanção” do imóvel - quando ele passa a ser de posse da Prefeitura.
No anúncio do Projeto de Lei, enviado pelo executivo, o prefeito afirmou que a prioridade da aplicação dele seria na área central da cidade, por meio do Programa Recentro. Contudo, até que ele se torne uma política efetiva, podem passar anos, porque há prazos a serem cumpridos pelos proprietários.
“Todos os instrumentos do Plano Diretor são importantes para que a cidade cresça e se desenvolva, mas infelizmente nem todas as gestões se preocuparam em regulamentar. [...] A partir da regulamentação, a Prefeitura tem um instrumento muito importante nas mãos para iniciar esse processo de requalificação”, pontuou Erika.
O que diz a Prefeitura do Recife
Por nota, a Prefeitura do Recife afirmou que entregará as 1.292 unidades habitacionais no próximo ano e que vem promovendo estudo de locação social, para oferta de 450 unidades prioritariamente no Centro. Ainda, que o governo federal é o ente com maior capacidade para investir em moradia social, cuja política foi, nos últimos anos, descontinuada - segundo a gestão municipal. Ainda, que tem trabalhado para urbanizar áreas que hoje são de risco e prestado assistência à população mais vulnerável. Leia nota completa:
"No primeiro semestre de 2023 devem ser entregues as 448 unidades do habitacional Vila Brasil e as 600 unidades do habitacional Encanta Moça. O Habitacional Sergio Loreto, com 244 unidades, deverá ser entregue até o final do próximo ano. Estão em andamento os estudos da PPP da Locação Social, com objetivo de ofertar, no mínimo, 450 unidades habitacionais prioritariamente na área central da cidade.
A Prefeitura do Recife informa que mantém diálogo constante com os movimentos sociais e entende que a pauta da habitação popular passa por uma ampla discussão que envolve não somente o município, mas fundamentalmente o governo federal, ente federado com maior capacidade para realização de investimentos em moradia social. Com a extinção de programas como “Minha Casa Minha Vida”, o Brasil passou a conviver com a descontinuidade de importantes ações habitacionais com o foco na entrega de moradias dignas à população, ao passo que deixou de combater o déficit habitacional no País.
Em outra frente do esforço municipal, através do recém-criado Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental (ProMorar), o Recife terá obras estruturadoras de habitação popular, como parte do maior ciclo de investimento da história da cidade na reconstrução de áreas atingidas pelas fortes chuvas deste ano e urbanização de comunidades vulneráveis, no valor total de cerca de R$ 1,3 bilhão.
Um dos alvos principais do programa é mitigar o déficit habitacional com entrega de novas unidades habitacionais e também reforma de domicílios existentes, evitando ao máximo a saída das pessoas do local onde vivem, a fim de preservar os laços de vizinhança solidificados com a convivência comunitária.
A população em vulnerabilidade que vive no Centro do Recife tem disponível atendimento dos serviços da Assistência Social por meio dos Centros POP e CRAS. Os equipamentos contam com profissionais que acolhem as pessoas, identificam as necessidades do indivíduo ou da família e encaminham para as demais políticas públicas necessárias. O CRAS é um equipamento cujo serviço é porta de entrada para os demais serviços voltados para a população em vulnerabilidade, assim como o Centro POP, que é voltado para atender a pessoa que vive em situação de rua."