Mais uma vez, a decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) gera ruído no meio jurídico. No último sábado (19), o ministro Kassio Nunes Marques decidiu, de forma monocrática, tornar inconstitucional parte da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010). Logo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu da decisão e defesas de prefeitos eleitos, que estão com a candidatura sub judice e se encaixam no novo entendimento, preparam recursos para que eles sejam diplomados e assumam seus municípios em 2021. Juristas ouvidos pelo JC divergem sobre a segurança jurídica em torno do tema, que deve ser apreciado pelo Plenário do STF no próximo ano, mas já tem validade.
Ao analisar pedido apresentado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), Nunes Marques declarou inconstitucional o trecho "após o cumprimento da pena" previsto no artigo 2º da Lei da Ficha Limpa. Na decisão, ele afirmou que a redação atual da norma pode gerar uma inelegibilidade por tempo indeterminado, uma vez que a sua duração dependeria do tempo de tramitação dos processos. Conforme a lei vigente há uma década, são inelegíveis condenados em decisão transitada em julgada ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o prazo de oito anos após o cumprimento da pena. A medida vale para os crimes previstos na norma, caso de delitos contra o patrimônio público e meio ambiente, por exemplo. A liminar concedida pelo ministro antecipa o início da contagem dos oito anos.
Já a PGR, encaminhou ao presidente da Suprema Corte, ministro Luiz Fux, um recurso no qual pede a revogação imediata da decisão ou, pelo menos, que seja assegurada a manutenção das decisões judiciais tomadas com base no trecho questionado da lei até que plenário do STF aprecie o tema. "A superação monocrática desse precedente obrigatório é ato que não encontra respaldo na legislação sendo capaz de ensejar grave insegurança jurídica no relevante terreno do processo eleitoral – expressão máxima da vontade popular", aponta um dos trechos do documento da PGR.
Na visão do advogado especialista em direito eleitoral Emílio Duarte, o STF precisa analisar se um único ministro pode mudar a constitucionalidade de uma lei já apreciada pela Corte. "O Tribunal já se debruçou sobre a constitucionalidade da Lei (da Ficha Limpa) e a declarou constitucional. Então, o Supremo deverá analisar se uma lei já declarada constitucional da Corte pode ser considerada inconstitucional por meio de uma decisão monocrática e isso vai ao Plenário após o recesso. O ministro retirou a demora no start da contagem, ele entendeu que esse trecho é inconstitucional e a decisão serve a quem está pendente de apreciação do processo. Uns discordam outros concordam, mas ela foi publicada e está válida no ordenamento jurídico", afirmou.
Ainda de acordo com Emílio, o STF está indo na contramão do equilíbrio nas decisões. "Como um plenário julga uma lei constitucional e um ministro, em uma decisão de fim de semana, monocrática, julga inconstitucional aquele trecho? Eles (os ministros) são atores da insegurança jurídica, deveriam ser o equilíbrio das decisões judiciais, mas são causadores da insegurança", ressaltou.
Entre os possíveis beneficiados da decisão está o prefeito eleito de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco, Marcos Luidson de Araújo (Republicanos), o Cacique Marquinhos Xucuru. Ele comemorou nas redes sociais. "Tive a conversa com nossos advogados em Brasília sobre a decisão do STF relacionada à inelegibilidade, esperei maiores instruções para falar o correto. Essa decisão nos favorece muito, então fico muito feliz, estão até subindo carros aqui buzinando, e a decisão nos favorece, pois dentro do nosso processo, no TSE, nós já entrávamos na nossa defesa questionando o tempo que é contado a inelegibilidade, e o que ocorresse no TSE, tínhamos argumento para ir ao STF", afirmou Marquinhos em vídeo no Instagram.
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O advogado Eric Brito, que faz parte da defesa do cacique, explicou que a decisão de Kassio Nunes Marques beneficia Marquinhos Xukuru, pois a primeira condenação ocorreu há mais de oito anos. "Se você contar pela condenação de 2015, não valeria, mas a condenação de 2015 não foi a primeira, foi antes e esse prazo se encerraria agora, em 2020, antes da eleição. Então, o lapso temporal se encaixa no caso dele", afirmou.
Segundo o despacho do ministro, a decisão vale apenas para as eleições deste ano, que ainda estão pendentes de análise pela Corte e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela se aplica aos condenados por crimes contra a economia popular, fé pública, administração pública, sistema financeiro, meio ambiente e saúde pública, entre outros.
Com o novo entendimento, a defesa do prefeito eleito se reuniu, nesta segunda-feira (21), e decidiu juntar uma petição ao processo já existente, pedindo que o TSE reconheça a elegibilidade do cacique, apontando que o lapso temporal se adequa ao caso. "Não há prazo para que o tribunal analise, mas levando em consideração um pleito, acreditamos que não demore. Em breve teremos resolvido. Quem ganha é o povo de Pesqueira que decidiu isso", afirmou Eric Brito.
O Cacique foi eleito prefeito do município de Pesqueira com 17.654 votos (51,60%). No entanto, ele pode não tomar posse do cargo porque, em 2015, foi condenado pela Justiça Federal pela prática de crime contra o patrimônio privado e incêndio. Na ocasião, ele foi condenado a 10 anos, 4 meses e 13 anos de prisão, além do pagamento de uma multa. Ainda não foram esgotados os recursos do processo.
Há juristas que defendem a decisão de Kassio Nunes como sendo um importante ajuste na Lei da Ficha Limpa. É o caso de Vânia Aieta, professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e advogada eleitoral. "De certa maneira, essa decisão dá um pouco de segurança jurídica. Não é demanda de agora, essa cobrança de um ajustamento da Lei é antiga. Creio que movimentos de combate à corrupção estão tendo leitura errônea da decisão ao criticá-la. A decisão do ministro foi acertada e imbuída de técnica. A Lei tinha defeito na aplicação, não se dá no mérito, não é sobre ser a favor ou contra a Ficha Limpa, isso é irrelevante", disse.
Nas redes sociais, o movimento Vem Pra Rua Brasil que faz protestos em defesa do combate à corrupção, criticou a decisão do ministro do STF. "Kassio, o ministro que Bolsonaro indicou para o STF, estrangulou a lei da Ficha Limpa. A decisão beneficia Lula e diversos outros condenados por corrupção", afirma o grupo.
O ministro do STF Marco Aurélio concedeu no último fim de semana e disse ver com perplexidade a decisão do colega, Nunes Marques. "Quando nós apreciamos a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, nós apreciamos no todo. Eu penso que em cima de uma eleição, não dá para inovar", afirmou Aurélio ao jornal Correio Brasiliense. "Por isso eu vejo com uma certa perplexidade? Porque Supremo já tinha enfrentado essa lei, né?", completou.
De acordo com dados do TSE, nas eleições municipais deste ano foram indeferidas 2.354 candidaturas por conta da Lei da Ficha Limpa. No pedido do PDT julgado por Kassio, a sigla ressalta que a suspensão do trecho impactaria menos candidaturas do que o número total, a depender do motivo previsto na lei considerado para indeferir o registro.
"O que se busca por meio da presente ação direta é precisamente a declaração de inconstitucionalidade, com redução de texto, da expressão normativa cuja interpretação tem acarretado uma inelegibilidade por tempo indeterminado dependente do tempo de tramitação processual - entre a condenação por órgão colegiado e o trânsito em julgado", justificou o partido.
Marco Aurélio ressaltou que o artigo 16 da Constituição Federal prevê que "a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência". "O que se busca com isso: a estabilidade, a certeza quanto ao que pode ou não ocorrer. É você disputar sabendo quais são as regras do jogo. Não dá para, em cima de uma eleição, você inovar ante a esse princípio constitucional. Há esse princípio. Ou seja, se nem o legislador pode inovar, o Judiciário poderá? Aí que fica a pergunta no ar", afirmou.
Marcelo Labanca, professor de direito constitucional, faz críticas ao modus operandi do STF, mas vê com bons olhos o mérito da decisão. "É preciso analisar a engrenagem da Corte, parecem onze supremos e não um. Tomam decisões monocráticas que terminam sendo vinculantes a outros casos e geram certa insegurança jurídica, pois geram a percepção de ausência de coerência interna entre os membros da Corte. Na Itália, por exemplo, eles decidem em uma única decisão, você não sabe quem julgou como, é um documento assinado pela corte, não é assinado de forma individual. Aqui tem a decisão de cada ministro, o STF decide com uma técnica fatiada de decisão. Kassio deu a liminar, que vai ser apreciada pelo plenário e os outros ministros darão, cada um, sua decisão e veremos a tese vitoriosa. Isso fragiliza. O Supremo deveria dar um posicionamento colegiado, o grupo deveria dar uma opinião", apontou o jurista.
Labanca citou o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para exemplificar a aplicação da Lei. "Quando Lula foi condenado no TRF-4, começou a inelegibilidade e, assim, ele fica até o transito julgado. Depois do trânsito em julgado, mantida a condenação, serão mais oito anos. Então o processo pode tramitar por anos sem tramitar em julgado, você recorre e a pessoa segue inelegível. Assim, você teria um prazo que me parece ser muito desproporcional. Temos os direitos fundamentais. Entre eles, a participação política e ele existe para proteger o cidadão contra ações do Estado é para que não sejam retirados seus direitos e com essa situação, a pessoa fica refém do Judiciário colocar o processo em julgamento, é como se houvesse subversão da ideia", concluiu.
Por outro lado, Marcelo Peregrino Ferreira, advogado e doutor em Direito, enfatizou a necessidade de haver um prazo para a inelegibilidade. Ele faz críticas à Ficha Limpa e afirma que a lei "retirou milhares de candidatos do pleito e impediu que a soberania popular se manifestasse". "A Lei gerava inelegibilidade com pena indefinida, começava a contar com a condenação colegiada e se estendia ao cumprimento da pena. Porém, quanto mais uma pessoa recorrer, mais aumenta essa pena de inelegibilidade, criando uma pena perpétua, que não tem abrigo em nenhuma Corte ou foro internacional de direitos políticos. Há decisões condenando inelegibilidade sem prazo, sem proporção e o ministro admitiu que o período conte a partir da primeira decisão colegiada até oito anos e não poderá superar esse período", comentou.
Para Peregrino, as críticas à decisão são uma mistura de "boa intenção com ingenuidade". "É um modelo ingênuo de pensar que combate a corrupção pela seleção de candidatos que disputarão as eleições. Isso não funciona em lugar nenhum do mundo, a decisão cabe ao povo e há outras formas de afastar os políticos, como os partidos, o voto", comentou.