Quando entrou no plenário da Câmara do Recife pela primeira vez como vereadora eleita, Dani Portela (PSOL) foi procurada por um funcionário da limpeza da Casa. Ele disse ter dúvidas se tinha acabado de passar por um episódio de racismo. “Um parlamentar teria dito, supostamente brincando: a vereadora mais votada se parece com você, mas ela não veio para limpar o banheiro”, conta ela, que é negra. “As pessoas que se parecem comigo na Câmara estão nos serviços terceirizados, de limpeza e de recepção”, diz.
Setenta e cinco por cento dos vereadores na Câmara do Recife são brancos. O número é quase o dobro da presença de brancos na população da cidade: 41%. A maioria dos recifenses, 57% da cidade, é negra (soma de pretos e pardos). E, portanto, sub-representada.
A alta concentração de caucasianos no Legislativo faz com que Recife tenha a 4ª Câmara de Vereadores mais branca entre todas as capitais do País. A cidade perde apenas para as três capitais da região Sul: Florianópolis (96%), Curitiba (86%) e Porto Alegre (83%). Os números, compilados pelo JC, são da plataforma Panorama do Legislativo Municipal, uma base de dados lançada pelo Senado Federal sobre os vereadores de todas as cidades do Brasil.
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“A caneta que ao longo da história define as leis e toma as decisões não está nas nossas mãos. Nas mãos das mulheres, das pessoas negras, das pessoas pobres. A gente tem uma democracia representativa que não representa”, afirma Dani, a vereadora mais votada na Capital em 2020.
A presença de brancos na Câmara do Recife está muito acima da média do Estado, onde 40% dos 2151 vereadores são brancos. Dos 178 municípios pernambucanos com dados de raça presentes na plataforma, apenas nove têm um Legislativo mais branco do que o da Capital. Todas são cidades pequenas. A maior delas é Bonito, no Agreste, com cerca de 38 mil habitantes.
Questionada sobre as ações de combate ao racismo e para permitir a participação popular de pessoas negras, a Câmara lembrou da criação na atual legislatura, da Comissão Permanente de Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo, presidida por Portela. “Recife é a única capital do País a ter um colegiado como este, que tem a função de discutir, analisar e propor medidas de igualdade racial e enfrentamento ao racismo”, afirmou o presidente da Casa, Romerinho Jatobá (PSB), através de assessoria.
O Legislativo também citou a tramitação de um projeto do vereador Rinaldo Júnior (PSB) que busca instituir o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, como feriado municipal. O texto já passou pelas comissões da Casa, mas ainda não chegou ao plenário.
Dani cita ainda outros exemplos, como a elaboração de um Estatuto da Igualdade Racial do Recife, legislação que já existia em outras cidades, mas não aqui. Ou o projeto que tenta regulamentar as cotas de até 20% de pessoas pretas ou pardas em concursos e seleções feitas pelo município. Embora o sistema de cotas já esteja previsto na Lei Orgânica da cidade há quase dez anos, ele nunca foi posto em prática porque espera uma lei própria que nunca saiu do papel, segundo a vereadora.
Dani admite, porém, que embora exista espaço para o diálogo e a construção política na Casa, defender a criação de políticas públicas para um segmento que é maioria na população tem sido difícil. “Pautas que para você são prioritárias, para um grande número dos colegas são secundárias. Alguns não entendem que a questão racial perpassa todas as outras áreas em que os vereadores trabalham: a educação, a moradia, a saúde, a geração de emprego e renda. Quem tem menos acesso a esses direitos são os negros e negras do Recife”, explica.
Eleição
Se a Câmara do Recife é muito mais branca do que a população, isso se deve ao resultado das eleições. Entre as disputas de 2016 e 2020, o número de vereadores brancos avançou 11%. Isso é resultado direto da escolha do eleitor. Dos 856 candidatos no município no ano passado, apenas 36,1% eram brancos. Mesmo assim, esses foram os eleitos.
Para Dani, isso é resultado do racismo estrutural, que age dos dois lados da disputa política. De um lado, os partidos, numa tentativa de se manter no poder, apostam em nomes que já tem um histórico político, perpetuando privilégios de raça, gênero e renda. Do outro, a população também não vota em candidatos mais diversos.
Ela vê avanços na tentativa da Justiça Eleitoral em criar uma cota para negros nas chapas, nos tempos de rádio e TV e na distribuição do fundo eleitoral. Mas teme que os partidos apostem apenas em “candidaturas fantasmas”, sem condições reais de vencer as eleições, como muitas legendas fizeram para cumprir as cotas femininas no passado. “Em algum momento, isso ainda é uma instrumentalização desses corpos, porque se forma uma candidatura, mas não se dá as condições para que essas pessoas disputem as eleições em pé de igualdade”, alerta.
Questionado se tem algo que a Câmara possa fazer para estimular um aumento no número de vereadores pretos e pardos, o presidente Romerinho Jatobá disse que a Casa é formada por vereadores e vereadoras que representam os anseios de diversas parcelas da população. “Quando assumimos a presidência desta Casa, aprovamos a criação da Comissão de Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo, que tem feito um trabalho sério e comprometido que vai além dos muros do Poder Legislativo”, afirmou.
Estado
A falta de representação da população negra nos espaços de poder, registre-se, não é um problema exclusivo do Recife. Em 97 cidades de Pernambuco, mais da metade do Estado, não há sequer um vereador preto. Embora mais de 65% da população pernambucana seja negra, em 54 legislativos municipais os brancos são maioria; o que inclui cidades como Caruaru, Salgueiro e São Lourenço da Mata.
A União dos Vereadores de Pernambuco (UVP) também foi procurada para falar sobre as ações de articulação dos vereadores negros e projetos para estimular o aumento do número de legisladores pretos ou pardos no Estado, mas não respondeu.