A planta não tem mistério: uma sala na frente, a cozinha atrás e um corredor no meio para os quartos e o banheiro. Rabiscado num pedaço de papel, o desenho ganha forma nas mãos de um pedreiro. E é assim, da arquitetura sem arquiteto, que a maior parte da população vai construindo a cidade do Recife, da Zona Norte à Zona Sul.
Nos morros e na planície, as casas são feitas do jeito que a pessoa pode, sem seguir normas e padrões arquitetônicos convencionais, afirma o professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Roberto Antônio Dantas de Araújo. “O resultado final pode até ser estranho, mas é funcional”, diz ele.
A necessidade guia o projeto, acrescenta a arquiteta Socorro Leite, diretora-executiva da organização não-governamental Habitat para a Humanidade Recife. “Cada um constrói a sua casa na medida do possível, às vezes gastando mais dinheiro”, comenta. A ONG, com sede na Boa Vista, presta assistência técnica a comunidades carentes.
Marluce Soares da Silva, merendeira, confirma a teoria. Moradora da Vila do Vintém, em Parnamirim, na Zona Norte, ela planejou a casa onde vive há 30 anos. “Eu mesma fui a arquiteta, paguei um pedreiro e disse a ele como queria. Ele pediu tantos mil tijolos, tantos sacos de cimento, fez a base e levantou as paredes. Era um mestre de obra experiente, trabalhava na construção civil. Devagarzinho, tudo estava de pé, e a casa nunca caiu”, diz ela.
Se você já teve a curiosidade de olhar para as edificações criadas pelo povo, deve ter percebido que muitas são cobertas por laje. Não é uma tendência, mas uma questão de sobrevivência. É ali, em cima do teto de concreto, que a moradia se verticaliza com novos pavimentos, para o filho que casa ou para aumentar a renda familiar com um possível aluguel.
As moradias da arquitetura sem arquiteto crescem em doses homeopáticas, dando origem aos famosos puxadinhos. “A pessoa faz uma estrutura básica para viver e depois vai aumentando e modificando”, declara Roberto Antônio Dantas de Araújo, que está desenvolvendo estudos sobre a autoconstrução em Pernambuco.
“Esse é um processo comum desde a arquitetura antiga, as grandes igrejas foram erguidas aos poucos. Primeiro se fazia o altar e uma capelinha. Após anos era construída a nave e tempos depois colocavam uma ou duas torres”, compara o professor, esclarecendo que residência de autoconstrução não traz um carimbo de pobreza.
A classe média constrói e reforma sem recorrer a arquitetos, observa Socorro Leite. “Historicamente, as famílias faziam suas casas contratando pedreiros de confiança, figuras com certa autoridade nas comunidades”, diz. Mas é na periferia que a arquitetura popular chama a atenção, com suas casas sem quintais e coladas umas às outras.
Com o terreno todo ocupado, quase não sobra espaço para árvores e plantas. “A área construída, para eles, é o que valoriza o imóvel”, afirma a arquiteta. Na organização dos espaços internos, iluminação e ventilação ficam em segundo plano. O resultado são luzes acesas durante o dia e ventilador sempre ligado, para refrescar.
A Habitat desenvolve uma experiência na Bomba do Hemetério (Zona Norte), com soluções sustentáveis para melhorar as condições de moradia da famílias. Para uma casa escura e quente, é sugerida a telha translúcida e a ventilação pelo telhado, quando não há laje. “A redução no consumo de energia elétrica chega a 30%”, diz Socorro.
A arquitetura sem arquiteto (vernacular) vem de longe, destaca o professor da UFPE. “Ela pode ser primitiva, como a moradia de índios e grupos sociais específicos e isolados; fantástica, como o castelo medieval de Pesqueira, no Agreste pernambucano; e suburbana, feita sem leis urbanísticas.”
É a falta de controle efetivo por parte da prefeitura, afirmam Roberto e Socorro, que impulsiona a construção informal. O professor inclui as casas de tábua, papelão e plástico na categoria de arquitetura de extrema necessidade. A característica, diz ele, é o uso do material provisório, simples e descartável, porque a ocupação pode ser removida a qualquer momento.
“Contrariando o senso comum, no período colonial a construção civil era mais organizada do que hoje. A população era menor e os habitantes obedeciam posturas municipais, códigos do reino e ordens de organizações de pedreiros”, informa o arquiteto.
Era uma época em que um morador não podia subir um cômodo que tapasse a vista para o mar do seu vizinho, comenta Roberto Dantas. “Hoje, há uma ganância por espaço, sem o cuidado e o respeito com a cidade e com o outro, como havia no passado”, declara.