Entre 1991 e 1992, o jornalista carioca José Castello realizou 21 encontros com o poeta e, mês passado, as gravações das conversas foram doadas à Fundaj. No depoimento dado ao repórter João Rêgo, ele fala sobre a convivência com João Cabral. Confira abaixo:
Ele propôs que, ao invés de eu conduzir as conversas, ele fosse falando de sua vida diplomática por temporada dos postos que ocupou nos diferentes lugares em que viveu. E ele me falou uma coisa muito interessante. “Talvez você pense que quando eu fui para Sevilha, fiquei escrevendo os poemas sobre Sevilha. Depois quando eu estava em Dakar fiquei escrevendo os poemas sobre Dakar. Mas nunca foi assim, nunca escrevia sobre o lugar em que eu estava, eu não conseguia, só conseguia escrever sobre o passado.” Ele se sentia livre para escrever sobre onde havia estado. E, naturalmente, para imaginar, inventar um pouco mais, tendo essa visão de distância.
Pouco a pouco nas nossas conversas, a poesia foi ficando menos importante do que a vida dele e suas experiência. Na Espanha, por exemplo, teve a amizade com o Miró, a paixão dele pela dança flamenca, o fato de ele odiar música. Odiava mesmo e a Marly [sua segunda esposa] era apaixonada por ópera, ele ia com ela para acompanhar e dormia antes mesmo de começar o primeiro ato. Eram coisas pequenas mas que, diante do grande poeta que ele era, todas passam a ter uma importante significância e ajudam a entender mais a poesia dele.
Eu gosto muito de tentar encontrar o homem ou a mulher que está por trás da obra literária. Não é bem o método consagrado pela universidade, onde se foca na autonomia da obra. Mas para mim não, é tudo misturado. Tento entender o pensamento, como tudo conflui em sua obra, sempre interessado então no homem João. Mas, evidentemente, muitas vezes ele falava de livros, se empolgava.
E eu, na época, estava até despreparado no sentido literário porque eu cheguei como jornalista e conhecia alguns livros dele, mas eu ainda não tinha lido sua poesia completa. Mas é natural e ele se empolgava em falar de seus livros muitas vezes, é um roteiro existencial dele. Essa nossa série de conversas se interrompe em 1992 porque eu já estava muito acelerado escrevendo a biografia do Vinicius de Moraes, já na fase final porque eu tinha começado a escrever em 1989. E aí eu estava começando a me desconcentrar nos encontros com João porque estava muito envolvido com Vinicius. Eu também estava de mudança para Curitiba e foi assim que o destino terminou com aquelas nossas conversas. Por telefone elas não rendiam muito, além dele ser muito formal tinha o fato dele falar muito baixo.
O lugar comum diz que o João Cabral era um poeta racional, cerebral. Ele mesmo se definiu em poemas, de forma indireta, como o engenheiro da poesia e dizia que odiava sentimentalismos. Vinicius de Moraes dizia que ele era duro como uma pedra, chamava-o de “poeta diamante”. Ao mesmo tempo, ele era um homem tímido e passava essa imagem de frieza través de sua postura social. Ao longo dessa minha convivência com ele, descobri que era tudo ao contrário. Ele era, sim, solene, mas sempre se mostrou comigo uma pessoa muito sensível, até insegura. Ele tinha o maior medo da morte e, especialmente, de ir para o inferno, apesar de ser ateu e não acreditar na existência de Deus.
Aos poucos percebi que a poesia serviu para ele como armadura que ele construiu para se proteger do mundo. Em seus últimos anos de vida, ele tinha até dificuldade em ler poesia, porque se emocionava muito, chorava, até quando ia ler poetas ruins, como ele me contava. Conversando com João sobre a vida, os anseios, eu comecei a entender que a poesia dele era resultado de um conflito interior muito grande, havia uma luta entre o homem sensível, delicado, e o que ele tentava ser, durão. Então essas conversas mudaram completamente minha visão sobre a poesia dele.