Ainda há muito o que ser mudado, mas a sociedade brasileira - e as esferas públicas que as representam - a cada dia dá mais sinais de que não é mais tão benevolente com motoristas que matam ao volante.
Principalmente aqueles que bebem e dirigem, que excedem a velocidade e desrespeitam a já benevolente legislação de trânsito.
Dessa vez, o exemplo vem de São Paulo.
O motorista acusado de atropelar, matar e não socorrer a cicloativista Marina Kholer Harkot, 28 anos, em 2020, será julgado por um júri popular. Ou seja, responderá por homicídio doloso - nesse caso pelo dolo eventual (quando o resultado morte não é desejado, mas atitudes contribuem para ele).
E, o que é mais importante: poderá ser condenado a 20 anos de prisão, por exemplo. Ou até mais.
A decisão foi da Justiça de São Paulo contra o empresário José Maria da Costa Júnior.
É assinada pela juíza Jéssica de Paula Costa Marcelino, que entendeu haver indícios de crime doloso contra a vida, ou seja, quando há intenção de matar.
"A alegação do réu de que não percebeu ter atropelado a vítima não se sustenta, haja vista sua atitude logo após o acidente, empreendendo maior velocidade para sair do local, como também os atos praticados logo após, como a tentativa de ocultar seu veículo no estacionamento, saindo do seu apartamento às pressas, ocultando-se na residência de uma amiga", afirmou a juíza em sua decisão.
A decisão de encaminhar o julgamento para o Tribunal do Júri cabe recurso - e com certeza a defesa do acusado a utilizará.
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José Maria Costa Júnior nunca foi preso porque escapou do flagrante e quando se apresentou à Polícia Civil era época de eleição, sendo a prisão proibida pela Justiça Eleitoral.
Agora, poderá recorrer da decisão em liberdade.
O recurso será analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que poderá manter o julgamento pelo Tribunal do Júri ou reclassificar o caso para homicídio culposo, quando não há intenção de matar.
Mas se a sentença for mantida, o empresário terá seu destino decidido por sete jurados.
Serão eles que decidirão se o motorista assumiu ou não o risco de matar a ciclista.
“NA PERDA NÃO HÁ ALEGRIA”
A família de Marina Kholer Harkot recebeu a notícia do julgamento por um júri popular com alívio e um sentimento de que a justiça começou a ser feita. Não com euforia. Nada disso, até porque, como o pai da cicloativista, Paulo Harkot afirmou, na perda não há alegria.
“Como nossa advogada afirmou, na perda não há alegria. É fato. É sempre muito difícil porque, a cada passo nesse processo, voltamos a enfiar o dedo em uma ferida ainda nova. E isso dói. Dói muito. Mas sabíamos disso. Sabemos que teremos uma longa caminhada pela frente, na qual seremos expostos várias e várias vezes, de forma muito dolorosa. Mas a sensação de que a justiça está prevalecendo é verdadeira”, afirmou Paulo Harkot.
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A agilidade no processo também foi algo referenciado pela família de Marina, que citou as milhares de famílias de vítimas que não tiveram ou têm a mesma oportunidade no Brasil.
“Pensamos nas milhares de vítimas que não puderam sentir isso porque o BO não foi adequadamente elaborado ou a perícia não foi bem feita. E que impediram que a promotoria levasse o caso à frente. Que não tiveram a sorte de encontrar promotores de Justiça tão aguerridos como nós encontramos. Não há como não lamentar tudo isso”.
ENTENDA O CASO
José Maria da Costa Júnior dirigia uma Hyundai Tucson e fugiu depois de atropelar e matar Marina. Pouco depois, foi flagrado por uma câmera em um elevador sorrindo e conversando com uma mulher.
A acusação aponta que Costa Júnior assumiu o risco de matar Marina, quando ela pedalava pela avenida Paulo 6º, na Zona Oeste de São Paulo, na madrugada de 8 de novembro de 2020.
Segundo a promotoria, o empresário dirigia em alta velocidade, estava embriagado e não prestou socorro.