O número de armas de fogo que foram furtadas da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), na área central do Recife, foi três vezes maior do que aquele que havia sido divulgado pela Polícia Civil de Pernambuco. Documento interno da corporação, assinado pelo delegado Adelson Barbosa, apontou que 1.131 armas - entre metralhadoras, pistolas e revólveres - desapareceram da delegacia.
O sumiço das armas foi descoberto por um comissário, responsável pela manutenção e conserto delas, em janeiro de 2021, logo após ele voltar de férias. Na ocasião, um inquérito policial foi instaurado e uma auditoria foi realizada pra identificar o número exato do desvio. Em agosto do mesmo ano, após uma operação que prendeu cinco policiais civis suspeitos de envolvimento no esquema criminoso, a chefia da Polícia Civil fez uma coletiva de imprensa e anunciou o número de 326 armas subtraídas.
Mas não foi bem assim, como mostra o documento assinado pelo delegado Adelson Barbosa em fevereiro de 2021, ou seja, seis meses antes. Na época, Barbosa estava lotado na Core.
Em abril de 2022, durante audiência de instrução e julgamento do caso, o delegado prestou depoimento por videoconferência e, questionado pelo Ministério Público, confirmou que mais de 1 mil armas foram furtadas da Core.
No depoimento, o delegado disse ainda que foi repassada à Polícia Federal a lista das armas subtraídas para que os dados fossem incluídos no Sinarm (Sistema Nacional de Armas), do Ministério da Justiça.
A coluna Ronda JC procurou a Polícia Federal, que confirmou o recebimento do ofício mencionado pelo delegado, com data de 24 de fevereiro de 2021.
"Confirmamos o envio da relação das armas pelo Core no dia 24.02.2021. E até agora não houve o registro de recuperação de nenhuma arma citada na relação enviada. Esse monitoramento é feito com informação enviadas pelas Secretarias de Defesa Social dos Estados", informou a PF.
Desde que o sumiço foi descoberto, o número de armas de fogo furtadas é uma incógnita. Até mesmo para autoridades que acompanham o processo (como promotores de Justiça) e advogados de defesa dos 19 acusados de envolvimento no esquema criminoso (Eram 20, mas um policial veio a falecer dias após ser preso).
Apesar da relevância, no inquérito, com mais de 1,9 mil páginas, não consta a informação da quantidade de armas desviadas da Core. O número também não é informado no processo encaminhado pelo Ministério Público à Justiça.
Os delegados Guilherme Caraciolo e Cláudio Castro, responsáveis pela investigação, foram questionados durante seus depoimentos em audiência de instrução e julgamento. Ambos disseram que não lembravam do número.
Procurada pela coluna Ronda JC nesta segunda-feira (11), a assessoria da Polícia Civil não se pronunciou sobre a quantidade de armas furtadas. A corporação também foi questionada se melhorou a segurança para controle das armas, mas também não respondeu.
AS INVESTIGAÇÕES
As armas de fogo ficavam guardadas em um depósito de acesso muito restrito na Core. Além delas, mais de 3 mil munições também foram furtadas. Logo após a descoberta do sumiço, uma perícia foi realizada e não foram encontrados sinais de arrombamento.
Por uma falha grave de segurança, no interior do setor de armaria não havia câmeras. Mas havia uma do lado de fora, apontada justamente para a porta de entrada. Foi descoberto, no entanto, que o equipamento não funcionava 24 horas por dia.
Entre as armas desviadas, 119 pertenciam à Guarda Municipal de Ipojuca, no Grande Recife. Elas estavam guardadas na Core enquanto os profissionais passavam por treinamento. As pistolas haviam sido doadas pela Polícia Rodoviária Federal.
Em depoimento à polícia, ainda em janeiro de 2021, um detento revelou que, anos antes, havia se dirigido à Core para comprar munições destinadas a uma facção criminosa - indicando aos delegados que a prática ilegal não era recente na unidade policial. O vendedor teria sido justamente um dos policiais civis que acabou indiciado ao final da investigação.
Outros depoimentos colhidos pela polícia revelaram a suposta ligação de comissários da Core com criminosos. A venda de munições e carregadores de pistolas seria prática comum e antiga. Uma caixa com 50 munições era vendida por R$ 350, revelam depoimentos.
Interceptações telefônicas também apontaram que armas desviadas da Core foram comercializadas para facções criminosas por valores que variavam de R$ 6,3 mil a 6,5 mil, cada uma. Já as submetralhadoras custavam R$ 22 mil nesse comércio ilegal. Integrantes ou pessoas ligadas a pelo menos duas organizações criminosas - incluindo detentos do Estado - foram identificados e fazem parte do rol de denunciados à Justiça.
No inquérito policial, os delegados Cláudio Castro e Guilherme Caraciolo classificaram o esquema como uma “Black Friday”.
“O que podemos denotar é que ao longo de anos, em virtude da falta de controle e um software onde todo o acervo bélico da polícia pudesse ser relacionado, policiais que trabalhavam diretamente com o acervo, se aproveitaram da facilidade de acesso e falhas na segurança, e passaram a desviar armas, munições e acessórios, revendendo esse material de maneira indiscriminada para todo e qualquer tipo de criminoso, integrante ou não de organizações criminosas. Uma verdadeira ‘Black Friday’ de armas, munições e acessórios. Houve criminoso que comprou e houve criminoso que intermediou a venda, e assim os valores da comercialização foram sendo majorados e se disseminando a oferta e a procura”, descreveram em relatório.
ANDAMENTO DO PROCESSO
Quatro policiais que viraram réus pela acusação da venda das armas continuam presos aguardando julgamento. Eles ainda não foram interrogados na Justiça, e não há prazo para julgamento. Até agora, cinco delegados já prestaram depoimento em juízo.
Os acusados respondem por crimes como organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo, peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva.
COMO AGIRAM OS POLICIAIS, SEGUNDO INQUÉRITO
1 - José Maria Sampaio Filho (comissário da Polícia Civil)
Foi reconhecido por uma testemunha por ter, em três momentos, “repassado grande quantidade de munição comercializada, que se destinou a uma facção criminosa. Numa operação da polícia, em agosto, para cumprir mandados de prisão contra os investigados, o policial foi flagrado na posse irregular de uma arma de fogo calibre 9mm sem registro.
2 - Cleido Graf Gonçalves Torreiro (comissário da Polícia Civil)
Apontado pelos investigadores como “o grande mentor/articulador” de todo o esquema de desvio de armas, munições e acessórios. Detinha acesso irrestrito à armaria da Core. “Sem qualquer justificativa, frequentava aos sábados e domingos a armaria. Manipulava planilhas com a inserção e supressão de dados. Utilizava intermediários na comercialização”, pontuou relatório da Polícia Civil. Ainda teria adquirido casa de veraneio e automóvel em nomes das filhas.
3 - Josemar Alves dos Santos (comissário da Polícia Civil)
Investigação apontou que ele auxiliava Cleidio no desvio das armas, munições e acessórios, manipulando as informações em planilhas no setor administrativo.
4 - Edson Pereira da Silva (comissário da Polícia Civil)
Segundo as investigações, “faltou com dever funcional realizando pesquisas no sistema integrado da Polícia Civil para integrantes da organização criminosa, justamente de um desafeto que eles estavam procurando para matar”.
5 - Carlos Fernandes Nascimento (agente administrativo da Polícia Civil)
“Fez contatos, intermediou, despachou e arrecadou dinheiro da venda de munições, armas e carregadores desviados da Core”, descreve o inquérito. Ele faleceu 17 dias após ser preso.