O jornalismo tem um papel na construção de uma memória coletiva sobre um país. A jornalista e escritora mineira Daniela Arbex entendeu que essa função, mais do que ninguém, ajuda a reconstruir fatos que podem mudar nossas relações com o passado e com o presente. Autora dos livros "Holocausto Brasileiro", "Cova 312", "Os Dois Mundos de Isabel" e "Todo Dia a Mesma Noite: A história não contada da Boate Kiss", a escritora tem usado do seu ofício uma luta para não esquecer histórias não estão aos olhos do público. Recentemente, a autora teve um trecho do seu livro sobre a Boate Kiss lido em sentença dos réus do caso.
Vencedora de prêmios como o Jabuti e APCA, Daniela Arbex é uma das palestrantes da 1ª Feira Literária de Goiana (Fligo), na Mata Norte, que começa nesta quarta-feira (15). A convite da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), a jornalista e escritora fará uma palestra sobre o papel do jornalismo como construtor da memória coletiva brasileira, a partir das 19h, sendo aberta ao público. Fabiana Moraes, que é jornalista, escritora, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fará a apresentação da conversa.
A autora chegou ao Estado após 12 dias de acompanhamento do julgamento dos réus do caso Boate Kiss. Foram quatro condenados, com penas entre 18 e 22 anos, para o crime que deixou 242 mortos e 636 feridos, há 8 anos em Santa Maria. Tinha sido, até então, a reconstrução histórica mais recente de Arbex em um livro e, durante o julgamento e a própria sentença, a autora foi citada com trechos lidos do "Todo Dia a Mesma Noite" pelo juiz.
"Só reforça o papel do jornalismo de qualidade e a importância da gente construir uma memória coletiva brasileira através do jornalismo. E como registro histórico, isso ter tanta qualidade e estar tão bem documentado a ponto de ser usado numa sentença de um juiz em um caso tão emblemático. Só reforça o papel do jornalismo no fortalecimento da democracia, da liberdade, da proteção contra todas as violações de direitos. Foi um trabalho que começou em 2016 e foi lançado em 2018", conta Daniela Arbex, em entrevista à TV JC.
Desde o início da produção do livro, há cinco anos, até essa semana, a escritora sempre teve em contato com os familiares das vítimas. Uma espécie da apego, que só quem escreve a não-ficção tem com a sua escrita. "O que eu percebi é que eles tinham a necessidade de saber e acompanhar. Foi um rito de passagem muito doloroso, mas foi muito emocionante. No dia seguinte, teve um almoço... Porque os réus não saíram do plenário, mas isso não preocupava os pais, porque eles queriam um reconhecimento público da justiça de que houve dolo e do sofrimento deles. Isso aconteceu. O juiz pede até desculpas no julgamento", afirma a escritora.
Registro da memória
O processo de escrita de Daniela vai além do ato de colocar as cenas no papel. Em "Todo Dia a Mesma Noite", assim como nas outras publicações, a autora voltou para contar sobre a história dos filhos às famílias atingidas. "No "Todo Dia", além de fazer esse trabalho que é ler todos os capítulos com eles, eu mandei o livro para as famílias antes de chegar nas livrarias. Uma das mães me respondeu assim: 'Receber teu livro foi como receber minha filha de volta'. Eu sempre fico emocionada, porque quando a gente tem um retorno desse, tudo que você fez valeu a pena", enfatiza Daniela.
Em acompanhamento a esse processo, ela está trabalhando como consultora para uma série de ficção da Netflix sobre a Boate Kiss. "Será uma série incrível, uma série de ficção de cinco capítulos. O roteiro está maravilhoso e estou trabalhando na série como consultora. Então, está sendo maravilhoso a gente inspirar uma série dessas que vai contar uma história para milhões de pessoas. Isso é construir memória coletiva do Brasil, é quando podemos contar histórias para pessoas e elas vão entender", explica a documentarista, que também está com a série "Colônia", baseada no "Holocausto Brasileiro", para o Globoplay.
Novas histórias de Brumadinho
Embora tenha muitos projetos sendo tocados, Daniela ainda toca um novo livro. A publicação, que se chama "Arrastados", será lançado em 25 de janeiro. Com prefácio do jornalista Pedro Bial, e divulgado pela Intrínseca, o livro foi construído a partir de mais de 200 depoimentos, entre sobreviventes, familiares e autoridades. A tragédia de Brumadinho, que completa três anos no próximo mês, devastou 17 cidades mineiras e 272 mortes.