"Olhei pra ela e disse: vai já pra cozinha / Dei um murro nela / E joguei ela dentro da pia / Quem foi que disse / Que essa nega não cabia?". O trecho é da canção "Minha Nega na Janela" (1955), de Germano Mathias. Uma letra condenável para os dias de hoje, pelo teor machista e violento, mas que foi um sucesso do samba na metade do século passado. Tanto que foi regravada por Gilberto Gil, em 1978, e sua conotação de violência de gênero novamente não foi - pelo menos publicamente - percebida.
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Tamanha discrepância sobre a percepção da canção diz respeito a um fenômeno que vem ocorrendo há alguns anos com o avanço de pautas ligadas a movimentos sociais, muito através das redes sociais. Recentemente, a discussão voltou à tona com uma declaração de Chico Buarque no documentário "O Canto Livre de Nara Leão", dirigido por Renato Terra e disponível no Globoplay. O cantor disse que não voltará a cantar "Com Açúcar, Com Afeto" (1966) em shows por não se sentir confortável.
A razão que levou à decisão de Chico são as críticas de feministas à composição,, que descreve a rotina de uma dona de casa que tem como função servir ao marido que vive na rua bebendo e flertando com outras mulheres. No final da canção, ela aceita a sua condição: "Logo vou esquentar seu prato / Dou um beijo em seu retrato / E abro os meus braços pra você." A faixa está presente em "Ventos de Maio", de Nara, e em "Chico Buarque de Hollanda Vol. 2", ambos de 1967.
Essa música foi encomendada pela própria Nara, que queria uma canção que descrevesse uma mulher sofredora, a exemplo daquelas de Assis Valente, Ary Barroso e de outros sambas antigos que descreviam mulherengos. "Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente", decretou Chico, no documentário.
A afirmação levantou uma forte discussão. Essa decisão seria justa? Ou um exagero? O que fazer com canções que aparentemente não chegaram tão bem na atualidade? Especificamente no caso de "Com Açúcar, Com Afeto", muitas vozes se levantaram contra esse suposto "cancelamento". Afinal, a letra não necessariamente romantiza a condição da mulher, mas expõe para que o ouvinte faça as suas reflexões.
"É importante contextualizar algumas coisas: o momento histórico da criação, se essa música foi encomendada - criando um estilo de personagem que a cantora estava a fim de interpretar - e também o eu-lírico. A canção pode mostrar retratos de personagens, como ocorre na literatura", explica Caroline Abreu, professora do Departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Com a canção ocorre um pouco disso de as pessoas fazerem uma analogia direta do texto e do personagem ao que o compositor acredita. Sinto um pouco mais de falta dessa diferenciação", continua.
"Sobre 'Com Açúcar Com Afeto', entendo que aqueles são valores que não precisamos defender, mas é retrato do que ainda ocorre em muitos lugares. Nesse sentido, a canção poderia fazer uma crítica. Existem outras críticas mais ostensivas, claras na própria letra, como na canção de protesto. Mas também entendo que os artistas possam ter essa liberdade de não cantar."
Se a atual controvérsia de Buarque pode causar discordância pela presença do eu-lírico, outros casos são unanimidade. "Mas se ela vacilar / Vou dar um castigo nela / Vou lhe dar uma banda de frente / Quebrar cinco dentes e quatro costelas", canta Zeca Pagodinho em "Faixa Amarela" (1997). Ele também já retirou a faixa dos seus shows.
"Se te agarro com outro, te mato! Te mando algumas flores e depois escapo", escreveu Sidney Magal na faixa homônima (1977). "Eu só sei que a mulher que engana o homem merece ser presa na colônia, orelha cortada, cabeça raspada", registrou Bezerra da Silva em "Piranha" (1979).
O fenômeno atravessa os mais diversos gêneros. Mano Brown já disse que não canta mais "Mulheres Vulgares", de 1993. "As negona vão me matar amanhã, a gente não pode nunca mais falar essas coisas", disse, em 2017. A dupla Sandy e Júnior evitou o trecho final de "Maria Chiquinha" em shows da turnê recente. "O resto? Pode deixar que eu aproveito", diz a Junior na versão original. A variedade de exemplos está reunida no site Música Machista Popular Brasileira (MMPB), site criado em 2018.
"As canções são objetos culturais que sempre dialogam com seu contexto, mas a sua significação vai mudando de acordo com o tempo. Então é possível entender de uma forma numa época, e de outra forma em outro momento. A obra não é congelada, e as significações sobre ela mudam", diz Isabel Nogueira, professora da UFRGS e doutora em história e ciências musicais.
"Ao mesmo tempo, decidir cantar a obra ou não, manter a canção no seu repertório, ou mesmo outras pessoas interpretarem, modificando alguma parte dela ou não, é uma decisão do/da artista. Esta decisão vem do que o/a artista percebe sobre os sentidos que a obra adquire/adquiriu em diálogo com o tempo de hoje", continua.
Sobre o caso de "Com Açúcar, Com Afeto", ela pontua que, na época do lançamento, artistas como Chico Buarque e Nara Leão tinham o papel de falar por outros, incluindo vozes menos ouvidas. "As últimas décadas trouxeram a realidade das pessoas falarem por elas mesmas nas músicas, então isto traz uma reinterpretação do papel da composição. E me parece que o próprio artista vai se percebendo no contexto. Escutando, eu penso: o que diria uma mulher que passa por uma situação de opressão? De que modo ela escolheria se expressar em canção, hoje?".
Regina Machado, professora de canção popular na Unicamp, aponta que, em relação a esse revisionismo, é preciso analisar que cada caso tem sua especificidade. "Essa capacidade crítica de olhar para a canção é um ganho importante para a sociedade. 'Minha Nega na Janela', por exemplo, tem muitos problemas pelo discurso machista e racista. Já 'Com Açúcar com Afeto' mostra o cotidiano de uma mulher inserida dentro desse sistema, mas sem olhar para ele criticamente. Existem outras canções do Chico em que o eu-lírico feminino olha criticamente".
Ela também ressalta que as problemáticas estão para além de questões como o gênero musical. "O machismo e o racismo são estruturais na sociedade brasileira. É natural que isso apareça nas canções, porém é necessário realmente pensar sobre cantar a música ou não. Esse senso crítico deve ir além de uma política de cancelamento da internet", finaliza.