Passado, presente e futuro de Lia se encontram na Praia de Jaguaribe, uma das onze orlas da Ilha de Itamaracá. Após rodar o mundo, o maior sonho da cirandeira continua bem ao lado da sua casa. Recentemente, ela inaugurou por lá a Embaixada da Ciranda, uma exposição permanente sobre sua trajetória, mas ainda luta pela execução do Centro Cultural Estrela de Lia, projeto maior que busca fomentar a cultura local com apresentações de ciranda, coco, oficinas e atividades pedagógicas para a comunidade.
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Para além das conquistas já conhecidas dos últimos anos, a "Rainha da Ciranda" tem agenda agitada para 2022. Participará de uma série brasileira da Netflix gravada em Salvador (BA), fará uma ocupação com oito shows no Itaú Cultural, em São Paulo, e está em tratativas para se apresentar com um músico no suntuoso Carnegie Hall, em Nova York. Lia está no mundo. O mundo, por sua vez, ainda desconhece o território que batizou o seu nome artístico.
Ocupada nos primórdios da colonização nas Américas, a Ilha do Litoral Norte de Pernambuco tem um relevante patrimônio histórico e natural, mas sumiu dos holofotes nas últimas décadas por falta de iniciativas do poder público e pelo crescimento do veraneio no Litoral Sul. Todo o imaginário que ronda a própria Lia poderia ser utilizado naquela área, atraindo turismo, fomentando a cultura e inspirando novas gerações.
O Centro Cultural Estrela de Lia funcionou entre 2005 a 2014, realizando rodas de cirandas semanais, sempre aos sábados. As programações contavam com artistas convidados, tendo ainda funcionalidade cultural, turística, recreativa, educativa e social. Ele está fechado há oito anos, desde que fortes chuvas desabaram a sua estrutura. Hoje, existe apenas um palhoção.
"Esse Centro ainda vai sair, eu tenho fé em Deus que sai. Não vai ficar do jeito que tá", diz Lia, ao JC. "Estou aqui há mais de 60 anos e não pretendo deixar, não. É o que pretendo fazer, é o que gosto de fazer. Receber a comunidade, estar na ilha, que é onde nasci e me criei. Gosto de estar na Ilha porque ela está se acabando", lamenta.
Enquanto o novo projeto do Centro não sai do papel, a cirandeira, o empresário Beto Hees e a artista visual Lia Letícia juntaram esforços para montar a Embaixada da Ciranda, que ocupa uma parte das antigas instalações do Estrela de Lia, na Avenida Benigno Galvão, Praia de Jaguaribe.
O museu vivo conta com três salas que mesclam exposições, projeções de vídeos e uma instalação que traz areia da praia e uma jangada, usufruindo de todo um imaginário em torno de Itamaracá. O público pode ver vestidos usados em apresentações, fotografias pessoais e do fotógrafo Alfeu Tavares, memórias de família e um oratório montado por Lia, que é fruto do sincretismo, sendo católica e filha de Iemanjá.
Monitores exibem vídeos com depoimentos de músicos, pesquisadores e amigos para apresentar a história e o trabalho da artista. Nas paredes, títulos conquistados pelo trabalho dedicado à ciranda, como o de Patrimônio Vivo de Pernambuco, do Governo de Pernambuco, e o de Doutora Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal de Pernambuco e o de Comendadora da Ordem do Mérito Cultural do Brasil, do Governo Federal.
Inicialmente, esse museu foi montado no Forte Orange, fortaleza erguida em 1631 pelos holandeses e que concorre ao título de Patrimônio Imaterial da Unesco. Contudo, só ficou por lá durante 10 dias, pois os custos para a manutenção eram altos e a artista não encontrou patrocínio para sustentá-los.
"Eu sozinha não podia arcar com aquilo dali, era muita despesa. A Prefeitura cedeu uma sala do Forte Orange para colocar os materiais, mas não ajudaram com mais nada. Tínhamos despesa de tudo: transporte, alimentação, pagar para quem ficasse lá tomando conta do trabalho", explica Lia. Com a mudança, a artista voltou para a Praia que atravessa sua vida: "É onde nasci e me criei, então me dei muito bem".
Lia Letícia, que realizou a curadoria junto à Lia, explica que a exposição permanente é uma continuidade da mostra "Lia e a Ciranda", realizada no Recife, no Rio de Janeiro e em Brasília em 2013. "Já na época, pensamos em trabalhar a carreira dela, como mulher negra e múltipla que é. Muitas vezes colocam os artistas populares em caixinhas quase folclóricas, mas Lia é uma artista muito versátil, o que ficou nítido no seu álbum mais recente, produzido por DJ Dolores", explica a curadora.
"Foi por isso que pensamos em várias linguagens estarem presentes. A Embaixada nasce da vontade de colocar essa história em múltiplas plataformas artísticas: temos música, fotografia, objetos e audiovisual. Ela não quer ser algo estático. Queremos que novos trabalhos possam chegar lá, com parcerias com outros artistas", diz Lia Letícia, que adianta que será criado um cineclube no espaço. É importante frisar que a Embaixada continuará existindo quando o novo Centro Cultural Estrela de Lia sair do papel.
Esperança na Estrela de Lia
Em 2016, foi formalizado um convênio entre o Centro Cultural Estrela de Lia e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) para o repasse de uma verba referente a uma emenda parlamentar estadual do deputado Guilherme Uchôa, falecido em 2018, para a reforma do espaço.
Um projeto de requalificação foi elaborado pela Gerência de Preservação Cultural da Fundarpe, com três ambientes: salão, palco, que passará por uma ampliação, e camarim, destinados às atividades da ciranda de Lia e outros eventos. Também seria criado um acesso de serviço com depósito de lixo.
"A gestão anterior da Prefeitura de Itamaracá recebeu R$ 240 mil da emenda de Guilherme Uchôa. Eles cercaram o espaço, que ficou seis meses com tapumes, e não queriam obedecer ao projeto aprovado. Queriam colocar em outro lugar, algo totalmente diferente do que foi combinado com o CPRH e a Superintendência do Patrimônio da União", conta Beto Hees, produtor de Lia há mais de 20 anos.
"Então, não realizaram o projeto e no final da gestão fomos ao Ministério Público. Eles devolveram o dinheiro para o governo estadual. Agora, após uma conversa que tivemos, a atual gestão municipal conseguiu resgatar essa emenda. Vamos usá-la para fazer a parte da caixa d'água e do esgoto. Eu não sei o que eles vão chegar a construir, pois o recurso para colocar de pé o projeto da Fundarpe chega a R$ 1,2 milhão. Isso foi orçado pela própria Fundarpe, que fez o projeto arquitetônico e projetos complementares".
Recentemente, a deputada estadual Gleide Ângelo também destinou uma emenda de R$ 180 mil em prol da execução do projeto. Beto diz que está correndo atrás de parceiros para levantar a obra, incluindo um leilão com artistas plásticos de São Paulo e do Rio de Janeiro.
No último domingo (27), Lia não deixou de marcar presença no Carnaval brasileiro, mesmo que simbolicamente. A artista foi convidada para ser anfitriã da ação online "Paredão Tropical", em Salvador, que teve atrações como Carlinhos Brown, Gaby Amarantos, Xanddy, Larissa Luz. "Eu me sinto bem por não estar parada. Estou levando o meu trabalho para fora. Tenho também a minha aposentadoria como merendeira e a mensalidade do Patrimônio Vivo", diz Lia.
"Eu encontro muitos artistas, com mestres da cultura, e as respostas são sempre as mesmas. Tudo está parado. Eu faço um vídeo, participo de uma revista e saio até para o exterior. Mas e os que não podem? Os que estão parados totalmente?", questiona.
Em 2020, a cirandeira não se apresentou no Carnaval pelo Governo de Pernambuco pela falta de atualização do seu cachê. "Lia subiu mais do que a inflação", decreta Beto Hees. "Precisam correr atrás se querem Lia representando. Ela é a artista de Pernambuco que mais trabalha fora. É preciso chegar junto para poder alçar voos. O que fazemos é por uma aproximação, mas não no nível, no conforto e na segurança que ela merece. Podia ser bem melhor, bem mais fácil", finaliza.