ARTE

Um labirinto cravejado de balas pode ser visitado no interior de Pernambuco

"Paisagem", instalação de Regina Silveira, é uma das novas obras da Usina de Arte, parque artístico e botânico no município de Água Preta, na Zona da Mata Sul

Cadastrado por

Romero Rafael

Publicado em 13/04/2022 às 13:40 | Atualizado em 13/04/2022 às 13:45
PAISAGEM Obra de Regina Silveira foi financiada pela Usina de Arte e apresentada na 34ª Bienal de São Paulo, em setembro do ano passado, antes de ser transportada para o parque artístico em Água Preta - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO

De repente, andando pela paisagem verde da Usina de Arte, localizada no município de Água Preta, na Mata Sul pernambucana, você vê de relance — ou se depara com — uma estrutura de vidro como se fosse uma aparição naquele lugar. Parece um labirinto, mas há entradas e saídas constantes. Não nos prende fisicamente, mas nos retém no que nos provoca.

As paredes transparentes estão como se tivessem sido perfuradas por balas, e também marcadas pelos estilhaços que deixam os tiros. Marcas de violência que, no Brasil, foram assimiladas à paisagem.

"Paisagem" é o nome da obra — uma instalação de quase 100 m², com paredes de vidro medindo 2,5 m de altura. Criação de Regina Silveira, artista gaúcha de 83 anos, radicada em São Paulo. Desde sábado (9), ela integra fisicamente o parque de arte contemporânea e jardim botânico aberto à visitação gratuita.

VESTÍGIOS Regina reproduziu marcas de tiros que viu em mídias diversas - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO

Junto com "Paisagem", o parque — que é uma antiga usina de açúcar, agora dedicada a moer histórias, temas e reflexões pela arte — inaugurou outra instalação permanente, a obra "Um Campo da Fome", do escultor Matheus Rocha Pitta, mineiro radicado em Berlim.

Há estilhaços na paisagem

A "Paisagem" de rastros de violência concebida em vidro por Regina Silveira chegou ao parque artístico e botânico depois de ser vista na 34ª Bienal de São Paulo, em setembro do ano passado. Na Usina de Arte ganhou outros sentidos — é o que enxerga a própria artista.

Quando foi montada no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, suas paredes transparentes sofriam interferências (da poluição visual) e refletiam a estrutura do lugar. Enquanto na Usina de Arte, ela quase flutua sobre um gramado verde, sem ter por perto nada que lembre a cidade grande das mais frequentes balas perdidas e achadas.

Regina diz que sua obra ganhou um quê fantasmagórico, pelo tanto de luz que recebe do sol abundante. As paredes de vidro fazem sombra no chão e refletem as perfurações e os estilhaços, criando novos vestígios. A artista considera que, ali, a sua instalação está inteira.

Obra "Paisagem", da artista Regina Silveira, do acervo da Usina de Arte - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Obra "Paisagem", da artista Regina Silveira, do acervo da Usina de Arte - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Obra "Paisagem", da artista Regina Silveira, do acervo da Usina de Arte - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Usina de Arte, localizada na Usina Santa Terezinha, distrito de Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, está aberta à visitação gratuita. Ocupa 33 hectares com arte contemporânea e jardim botânico e está em expansão - DIVULGAÇÃO
Usina de Arte, localizada na Usina Santa Terezinha, distrito de Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, está aberta à visitação gratuita. Ocupa 33 hectares com arte contemporânea e jardim botânico e está em expansão - DIVULGAÇÃO

"'Paisagem', deliberadamente, remete à violência diária que experimentamos — presencialmente ou virtualmente — em todo o mundo. Os tiros, furados e impressos digitalmente nos vidros, foram apropriados da mídia que consumimos em jornais, revistas e TV", diz a artista sobre os estilhaços impressos. Eles foram desenhados por ela seguindo uma tipologia com 12 marcas de tiros diferentes que observou no que viu em mídias diversas.

No labirinto que é "Paisagem", há saídas, mas o equivalente minotauro está impresso em cada parede de vidro.

Marcas de Regina Silveira

A obra da Usina de Arte reúne símbolos recorrentes na produção de Regina Silveira, que soma quase 60 anos de trabalho e faz dela um dos principais nomes das artes brasileiras desde a segunda metade do século 20, tendo também contribuído para a formação de vários artistas, quando professora da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e da Universidade de São Paulo (USP).

As ideias da artista já se utilizaram, por exemplo, da estrutura do labirinto e também das representações de marcas e vestígios; aquilo que se deixa. Em 2014, na série "Crash", ela apresentou louças de porcelana estouradas por tiros e com estilhaços. Os labirintos, que ela usa como representação de um espaço difícil de habitar ou atravessar, apareceram na sua obra ainda no início dos anos 70, numa série de labirintos gráficos.

A Usina de Arte

Com as instalações de Regina Silveira e Matheus Rocha Pitta, a Usina de Arte soma agora uma coleção de mais de 40 obras de artistas contemporâneos. Entre os que têm trabalhos no acervo estão Paulo Bruscky, Marcelo Silveira, Márcio Almeida, José Rufino, Flávio Cerqueira, Júlio Villani, Geórgia Kyriakakis, Frida Barenak, Denise Milan, Liliane Dardot, Bené Fonteles e Carlos Vergara.

No início de 2021, o Parque Artístico Botânico ganhou projeção nacional e também no exterior com o impacto da obra Diva, de Juliana Notari, com toda a repercussão que pode arrastar uma representação de uma vulva, entre outras questões ligadas à execução da obra, como a ausência de mulheres. A instalação está esculpida na subida de um dos morros que fica nos 33 hectares por onde se espalha a Usina de Arte.

Obra "Diva", de Juliana Notari - DIVULGAÇÃO

Entre a aquisição de novas obras e o trabalho de reflorestamento com cerca de 10 mil plantas de mais de 600 espécies, Bruna e Ricardo Pessoa de Queiroz, casal de colecionadores que administra a Usina de Arte, começam a expandir a área do parque de arte contemporânea e jardim botânico para mais hectares.

Através da Associação Socioambiental e Cultural do Jacuípe, uma entidade sem fins lucrativos, também fomentam uma escola de música e uma biblioteca aberta aos 6 mil moradores da Usina Santa Terezinha, distrito construído no entorno da destilaria fundada em 1929 por José Pessoa de Queiroz, bisavô de Ricardo.

A usina que foi a maior produtora de álcool e açúcar do Brasil nos anos 1950 está desativada. E, desde meados dos anos 2010, não vê progresso se não pelo turismo que a Usina de Arte começa a mobilizar; se não (e sobretudo) pela educação e pela arte.

Estive lá no início do projeto, em janeiro de 2016, quando registrei em vídeo um parque que já cresceu muito e continua em expansão:

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