INSTALAÇÃO ARTÍSTICA

Você já viu um roçado de fome? Obra monumental expõe alimentos petrificados e está aberta à visitação

"Um Campo da Fome", de Matheus Rocha Pitta, é uma das novas obras da Usina de Arte, parque artístico e botânico no município de Água Preta, na Zona da Mata Sul

Cadastrado por

Romero Rafael

Publicado em 13/04/2022 às 13:41 | Atualizado em 13/04/2022 às 13:49
UM CAMPO DA FOME Trabalho de Matheus Rocha Pitta foi construído com 9 mil peças de Tracunhaém - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO

Cenoura, cebola, milho, chuchu, batata, inhame, carambola, caju... frutas, verduras e raízes estão petrificadas na instalação permanente (e monumental) "Um Campo da Fome", do escultor Matheus Rocha Pitta, na Usina de Arte, localizada no município de Água Preta, na Mata Sul pernambucana, e aberta à visitação gratuita. A obra foi inaugurada no último sábado (9), junto com outra instalação, chamada "Paisagem", da artista Regina Silveira.

Em "Um Campo da Fome", o visitante verá uma fartura de alimentos pós-colheita disposta num roçado monumental de 30 canteiros, que ocupa uma área de mais de 700 m².

Parece uma terra onde tudo dá, mas não alimenta.

MONUMENTAL Imagem aérea da instalação Um Campo da Fome, que ocupa área superior a 700 m² - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO

A obra do artista se situa nas encruzilhadas da fome, ontem e hoje — ainda mais ao agora, quando remete ao retorno do Brasil ao Mapa da Fome; à soja que avança como monocultura; à produção de alimentos para exportação; ao abuso de agrotóxicos na indústria agropecuária; à inflação que torna inacessível mesmo a cesta básica; aos desafios na produção, distribuição e consumo de alimentos, neste presente e no futuro que é já.

"A fome é cultural"

Matheus Rocha Pitta enfatiza, no entanto, que seu trabalho "não é um tipo de alarme". "Ele se refere muito mais ao passado, mas a gente também pode ter essa leitura [para o presente e o futuro], diante dos desafios."

"Quando eu digo que não é alarmista é do ponto de vista de que o trabalho não quer denunciar, ele quer se instaurar no meio das contradições. Ele não tem uma mensagem, uma bandeira; ele está aqui no meio de uma monocultura — um jardim de cana-de-açúcar —, que é historicamente uma agricultura colonial. Então, ele é superpolítico, mas não está querendo dizer o que é certo e o que é errado, ele está jogando essas contradições em movimento", continua.

Comenta que o projeto colonial reservou a costa para a monocultura da cana-de-açúcar, empurrando a produção de comida para o interior ("Por isso a fome é cultural, ela não é natural"), e agora a monocultura da soja vai tomando esse interior. "É muito triste, porque roubam até o sertão da gente."

Um campo que retém a fome

Na petrificação dos alimentos e da terra em "Um Campo da Fome", Matheus, de certa forma, faz dois rituais: eterniza uma imagem de colheita abundante da agricultura familiar ("Que está virando um fantasma") e simbolicamente retém a fome ao usar como referência um terreno de mata, na Grécia Antiga, onde não se podia entrar sob a pena de que a fome fugisse e alcançasse outros lugares.

As frutas, verduras e raízes — todas cultivadas na região — somam nove mil peças e foram confeccionadas por Domingos de Tracunhaém, artesão que passou a vida fabricando frutas de mesa e faleceu seis meses após entregar os objetos, devido à covid-19. A instalação, que já celebrava a arte popular, acaba sendo também uma homenagem a ele.

"Um Campo da Fome" é um projeto que Matheus Rocha Pitta idealizou ainda em 2019, foi sendo elaborado na pandemia e começou a tomar forma em novembro do ano passado. Desde 14 de março e até às vésperas de inaugurar, ele trabalhava na sua colheita, em uma rotina diária que começava às 7h e seguia até as 17h.

Os canteiros são preenchidos por lajes de concreto, que receberam uma cobertura de cimento com terra, para dar a cor ocre. Os alimentos foram fixados numa camada de cimento mole, depois finalizada com um barro peneirado. A chuva já lavou, e o que permaneceu depois da água deve, que nem uma lavoura, erodir e se entrosar com a natureza. Já atrai formigueiro, passarinho e gente.

Obra "Um Campo da Fome", de Matheus Rocha Pitta, no acervo da Usina de Arte. Ocupa mais de 700 m², com 30 canteiros com frutas, verduras e raízes petrificadas, fabricadas pelo artesão Domingos de Tracunhaém - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Obra "Um Campo da Fome", de Matheus Rocha Pitta, no acervo da Usina de Arte. Ocupa mais de 700 m², com 30 canteiros com frutas, verduras e raízes petrificadas, fabricadas pelo artesão Domingos de Tracunhaém - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Obra "Um Campo da Fome", de Matheus Rocha Pitta, no acervo da Usina de Arte. Ocupa mais de 700 m², com 30 canteiros com frutas, verduras e raízes petrificadas, fabricadas pelo artesão Domingos de Tracunhaém - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Usina de Arte, localizada na Usina Santa Terezinha, distrito de Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, está aberta à visitação gratuita. Ocupa 33 hectares com arte contemporânea e jardim botânico e está em expansão - DIVULGAÇÃO
Usina de Arte, localizada na Usina Santa Terezinha, distrito de Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, está aberta à visitação gratuita. Ocupa 33 hectares com arte contemporânea e jardim botânico e está em expansão - DIVULGAÇÃO

A Usina de Arte

Com as instalações de Matheus Rocha Pitta e Regina Silveira, a Usina de Arte soma agora uma coleção de mais de 40 obras de artistas contemporâneos. Entre os que têm trabalhos no acervo estão Paulo Bruscky, Marcelo Silveira, Márcio Almeida, José Rufino, Flávio Cerqueira, Júlio Villani, Geórgia Kyriakakis, Frida Barenak, Denise Milan, Liliane Dardot, Bené Fonteles e Carlos Vergara.

No início de 2021, o Parque Artístico Botânico ganhou projeção nacional e também no exterior com o impacto da obra Diva, de Juliana Notari, com toda a repercussão que pode arrastar uma representação de uma vulva, entre outras questões ligadas à execução da obra, como a ausência de mulheres. A instalação está esculpida na subida de um dos morros que fica nos 33 hectares por onde se espalha a Usina de Arte.

Obra "Diva", de Juliana Notari - DIVULGAÇÃO

Entre a aquisição de novas obras e o trabalho de reflorestamento com cerca de 10 mil plantas de mais de 600 espécies, Bruna e Ricardo Pessoa de Queiroz, casal de colecionadores que administra a Usina de Arte, começam a expandir a área do parque de arte contemporânea e jardim botânico para mais hectares.

Através da Associação Socioambiental e Cultural do Jacuípe, uma entidade sem fins lucrativos, também fomentam uma escola de música e uma biblioteca aberta aos 6 mil moradores da Usina Santa Terezinha, distrito construído no entorno da destilaria fundada em 1929 por José Pessoa de Queiroz, bisavô de Ricardo.

A usina que foi a maior produtora de álcool e açúcar do Brasil nos anos 1950 está desativada. E, desde meados dos anos 2010, não vê progresso se não pelo turismo que a Usina de Arte começa a mobilizar; se não (e sobretudo) pela educação e pela arte.

Estive lá no início do projeto, em janeiro de 2016, quando registrei em vídeo um parque que já cresceu muito e continua em expansão:

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