Quatro famílias relatam a dor de perder parentes para a covid-19

É preciso pedir licença à dor para contar as histórias, mostrar os rostos. Remexer nas lembranças carregadas de afetos. O mais difícil é não poder dizer adeus
Ciara Carvalho
Publicado em 26/04/2020 às 7:22
André Tomé (Irmão da auxiliar de enfermagem vítima de covid19 que trabalhava no HGV e na Barros Lima) - Como ficam as famílias depois de perder alguém para o coronavírus. Foto: LEO MOTTA/ACERVO JC IMAGEM


Os números são assustadores. Na contagem divulgada até este sábado (25), 381 mortos. Trezentas e oitenta e uma vidas interrompidas por um inimigo invisível. Não, não são só números. São pessoas. Com filhos, netos, sobrinhos, vizinhos, contas para pagar, um jardim para regar, aquele sonho prometido para daqui a pouco. Ana Cristina tinha três empregos para dar conta de criar sozinha a filha. Djalma era fanático pelo Sport e adorava tocar tambor na roda de samba. José Carlos cuidava da mulher portadora de Alzheimer com tanto amor que ganhou até homenagem. Lenira escreveu o primeiro livro aos 100 anos. É preciso pedir licença à dor para contar as histórias, mostrar os rostos. Remexer nas lembranças carregadas de afetos. Nem todos conseguem. Não nesse momento. O mais difícil é não poder dizer adeus. Ver pela última vez, dar um beijo, se despedir. Na voz de quem sempre esteve perto, o susto de tudo ser tão rápido.

A saudade tem tantos rostos. E silenciou lares tão diversos, de endereços nobres a casas muito humildes, sem água nem esgoto. É certo que os mais velhos são os mais vulneráveis. Mais de 70% das vitimas da covid-19 em Pernambuco tinham idade a partir dos 60 anos. Mas há perdas também na juventude. O marido de Mysleid, o motorista de aplicativo Djalma Ramos, tinha só 38 anos. Homem alto, forte, saudável, trabalhava 12 horas rodando pela cidade. Em um mês, as mortes diárias para o coronavírus cresceram de forma brutal. Foram duas, no dia 25 de março, data do primeiro registro oficial. No balanço da última sexta-feira, o Estado já somava 30 óbitos contabilizados em 24 horas. Para cada uma dessas famílias, a dor extrapola a perda. Ela se potencializa, e isso é algo totalmente novo, na impossibilidade de viver o luto. Pelo menos da forma como sempre fizemos.

Em todos os relatos colhidos nessa reportagem, a pressa na hora do adeus, imposta por questões sanitárias, tem sido a parte mais dura de superar. Não dá tempo de chegarem os primos, os amigos, os netos, o colega de trabalho. Os poucos que podem estar presentes no sepultamento, na maioria das vezes, acompanham de longe. A despedida é de um caixão fechado. A imagem do corpo embalado em um saco plástico, sem flores, sem velas, sem tempo de dizer uma palavra derradeira, fazer uma última oração, torna a despedida incompleta, um peso a mais de se carregar.


“O que é o luto? É o tempo de que o cérebro e o corpo precisam para se estruturar da perda. E este primeiro momento está sendo negado, em função da pandemia, do risco de contaminação. Poder se despedir da pessoa querida é o primeiro passo do processo de habituação que envolve o luto e a superação dele”, explica Luciana Gropo, psicóloga cognitiva e comportamental. Uma alternativa, ela ensina, é cada um criar seu próprio ritual de despedida. “Vivenciar de uma maneira subjetiva essa perda, seja colocando uma foto num lugar de destaque, fazendo uma oração. O importante é tentar encontrar uma forma de deixar o cérebro menos reativo àquele sofrimento.”

Falar também é um caminho. Relembrar as histórias, refazer a trajetória de quem se foi. Quatro famílias concordaram em dividir, mesmo num momento tão difícil, a dor dessa saudade. Até como uma forma de homenagear e tornar mais viva a memória de uma vida inteira.

 

Acervo pessoal - Juliana Fônseca e o pai, José Carlos, que faleceu vitima de covid-19

 

“É um processo muito violento”

O aniversário de 75 anos do aposentado José Carlos Lins de Queiroz havia sido comemorado no domingo, dia 15 de março, numa pizzaria, com a família. Os sintomas chegaram dois dias depois. Passada uma semana, com a persistência da febre alta, ele foi levado a um hospital particular pela filha, a professora universitária Juliana Fônseca de Queiroz Marcelino, 42. Os exames indicaram uma infiltração no pulmão. Um dos médicos desconfiou de covid-19 e notificou o quadro suspeito à Secretaria Estadual de Saúde, além de solicitar o exame para coronavírus. “Outros médicos que o atenderam chegaram a diagnosticar o caso como gripe. O atendimento cuidadoso desse profissional foi fundamental para já direcionar o tratamento do meu pai”, diz Juliana.

Mesmo com a suspeita, ele foi mandado para casa. Após apresentar uma piora na capacidade de respirar, o aposentado voltou ao hospital já com os dois pulmões comprometidos. O quadro se agravou e, apesar de não ter nenhuma comorbidade ou doença preexistente, José Carlos veio a óbito, quase três semanas após o início dos sintomas.


“É muito violento todo o processo. São muitos medos, muitos fantasmas. Como estive com ele todo o tempo, precisei ficar de quarentena e não pude receber um abraço dos meus filhos. É devastador”, conta a professora. Já na UTI, o aposentado chegou a tomar hidroxicloroquina, medicamento que tem sido alvo de polêmica no tratamento da covid-19. Após o uso da medicação, José Carlos teve duas paradas cardíacas. “Fiquei com a suspeita de que o remédio tenha contribuído para a morte dele. Mas não temos como ter certeza”, relata Juliana.

Uma das recordações mais difíceis do período em que o pai esteve lutando contra a doença foi o momento em que ele recebeu o diagnóstico de que poderia ser um quadro de covid. “Somos evangélicos. Ele era um homem que tinha muita fé, mas ali sentiu o peso da notícia. Ficou abalado. Disse que eu não me preocupasse. Porque ele tinha 75 anos e já havia vivido muito tempo. Foi quando ele falou: ‘Seja feita a vontade de Deus’”, conta, emocionada, Juliana.

José Carlos sempre foi a referência de todos. Forte, saudável, paciente, carregava uma sabedoria que norteava os passos dos filhos. Perdeu o pai ainda adolescente e logo precisou virar arrimo de família. De todas as lembranças que deixou, uma era especial. A de cuidador. Foram 45 anos de casados. E o cuidado com a esposa, portadora de Alzheimer, virou um exemplo para os filhos. “Anotava tudo em planilhas, os remédios, os horários; era ele quem levava mamãe para as consultas médicas. Por onde passava, chamava atenção a dedicação com que cuidava dela”, recorda a filha.

 

Acervo Pessoal - André Tomé, irmão da auxiliar de enfermagem Ana Cristina, que faleceu vítima da covid-19

Uma vida dedicada a cuidar dos outros

No dia 27 de março, a auxiliar de enfermagem Ana Cristina Tomé, 52 anos, fez uma fotografia ao lado das companheiras de trabalho no plantão noturno da Policlínica e Maternidade Professor Barros Lima. Ana Cristina é a segunda em pé, da direita para a esquerda, na foto ao lado. Elas posaram para endossar a campanha “Fique em casa”, protagonizada por trabalhadores da saúde que atuam na linha de frente de combate à covid-19. No cartaz, o apelo pelo isolamento social. Foi a última vez que Ana esteve na maternidade.

No dia seguinte, já trabalhando na UPA da Bomba do Hemetério, ela passou mal, com cansaço e falta de ar. Liberada do plantão, foi mandada para casa. Como os sintomas continuaram ainda mais fortes, Ana procurou, quatro dias depois, a UPA de São Lourenço da Mata. Chegou por volta de meio-dia. Foi mandada direto à UTI para ser entubada. Às 15h, estava morta, após sofrer uma parada cardiorrespiratória. A família teve menos de quatro horas para providenciar o enterro. Por volta das 18h30, o corpo de Ana, envolto em um saco plástico e dentro de um caixão fechado, foi sepultado no Cemitério de Camaragibe, cidade onde morava. Apenas sete pessoas da família estavam presentes.


“Na sexta, ela chorou a morte de Betânia. No sábado, foi a vez dela.” A frase é do gerente de supermercado André Tomé, irmão de Ana Cristina. Betânia Ramos, 55, a quem André se refere, também era auxiliar de enfermagem. Trabalhava com Ana no Hospital Getúlio Vargas. Adoeceu e foi levada ao Hospital dos Servidores, onde veio a falecer. Ana só teve o material colhido para exame após a morte. O resultado, confirmando a contaminação, a família só ficou sabendo pela imprensa. Na segunda-feira (6), na coletiva diária feita pelo governo do Estado, o secretário André Longo anunciava, em meio ao balanço diário, a morte das duas auxiliares de enfermagem. Foram as primeiras vítimas da covid-19 entre profissionais de saúde do Estado.

Não ter recebido nenhuma ligação, nenhuma informação por parte das autoridades de saúde, revoltou a família de Ana Cristina. “Nenhuma das três secretarias de Saúde deu importância ao caso dela. Nem a de São Lourenço, onde ele foi atendida; nem a de Camaragibe, para onde mandaram o resultado do teste; nem a do Recife, onde ela trabalhava. Ficamos muito tristes. Não recebemos nenhuma assistência”, afirma André. Ana Cristina tinha uma filha, de 24 anos. A jovem também teve confirmação positiva para covid. Felizmente, os sintomas foram leves e ela está se recuperando. Como as duas moravam juntas, ela agora está sozinha, em casa. Em isolamento social. “Tem sido muito difícil para ela. Porque, além de superar a perda da mãe, não pode receber visitas.”

De todas as dores que carrega, André fala especialmente de uma. “Não pudemos fazer uma homenagem a ela, por toda a dedicação que ela sempre teve no trabalho. Antes de adoecer, ela mandava áudios para a família, orientando sobre a prevenção, dando dicas de como se proteger. Foram 28 anos de carreira na saúde”, destaca o irmão. A homenagem veio das colegas de trabalho. As auxiliares de enfermagem gravaram um vídeo, postado nas redes sociais: “Nós, amigos da Barros Lima, estamos de luto por nossa amada amiga. Ela deixou seu legado, lutando pela vida de tantos. Você nunca será esquecida. Saudades”.

BOBBY FABISAK/JC IMAGEM - Mysled Gonçalves perdeu o marido para a Covid-19. Ele era motorista de aplicativo.

 

“Acreditem. Essa doença é terrível”

A voz já estava ofegante. “Tô indo para a UTI. A doutora veio agora falar comigo. Disse que vai me transferir porque lá tem mais gente para cuidar de mim. Ela falou para eu não ter medo. Não comenta com mainha que eu vou para a UTI, não, visse? A médica explicou que o oxigênio do meu sangue está baixando. Mas não fica preocupada, não. Tá tudo certo.”

Foram dois áudios gravados e enviados na noite da sexta-feira, dia 17 de abril, para a esposa, Mysleid Gonçalves, 41 anos. Naquele mesmo dia, o motorista de aplicativo Djalma Ramos, 38, havia sido internado no Hospital Oswaldo Cruz, com cansaço, dificuldade de respirar, após dias de febre e dores no corpo. Chegou com uma equipe do Samu. A coleta para a testagem do coronavírus foi feita na porta do hospital, quando ele ainda estava na ambulância. Mysleid, o tempo todo ao lado de Djalma. “Internaram logo ele. Foi a última vez que vi meu marido vivo”, conta. No dia seguinte, no sábado, já na UTI, o motorista foi entubado. Dois dias depois, na segunda-feira (20), teve uma parada cardíaca e não resistiu.

Mysleid conversou com o JC na noite da última quarta-feira, no dia seguinte ao enterro do marido. Ainda sem chão, sofria por não ter conseguido sequer despedir-se, nem mesmo depois da morte. “Eu nem pude vê-lo. Esse vírus não mata só a pessoa. Mata a família, os amigos. Ele foi enterrado num saco branco, tive que ficar de longe no sepultamento.” Quando fala do marido, ela lembra a paixão dele pelo Sport Club do Recife e o gosto pelas rodas de samba. “Ele adorava tocar, gostava de música, amava a vida.”

Djalma era motorista de aplicativo há dois anos. Entrou na atividade depois de ficar desempregado. Já tinha conquistado uma lista grande de clientes fixos e isso era um motivo de orgulho para ele e a esposa. “As mães confiavam nele para levar os filhos na escola, no médico. Era uma pessoa muito boa, trabalhadora. Fazia amizade com todos os clientes.” Quando a pandemia começou a somar vítimas, ele ficou extremamente preocupado. Pensou em deixar de rodar, mas dependia das corridas para sustentar a família. “Como a gente ia fazer para comer? Pagar o aluguel? Ele estava tomando todas as precauções, usando álcool em gel no carro. Estava seguro de que nunca ia pegar esse vírus”, conta.

Uma semana antes de ser internado na UTI, Djalma começou a sentir febre alta. Peregrinou por UPAs lotadas. Após horas de espera, era medicado e sempre mandado de volta para casa. Chegou a pagar consulta particular, quando o quadro se agravou muito. “É uma dor sem fim. Acreditem. Essa doença é terrível. Ela destrói a pessoa. Meu marido era forte, saudável, um homem de muita garra. Lutou muito para continuar vivendo.”

ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM - Ana d’Azevedo e João Paulo são filha e neto de Dona Lenira que tinha 102 anos e morreu vítima da Covid-19. Pandemia do novo coronavírus em Recife, Pernambuco, Brasil.

102 anos de muito amor e apego à vida

Lenira Sales de Azevedo e Silva sempre gostou de ler. Lia o jornal todos os dias, deitada na rede, sem precisar de óculos, como fazia questão de ressaltar. Gostava também de escrever. Aos 100 anos, publicou seu primeiro e único livro, contando a história de sua família. Já tinha essa idade, quando pegou a estrada para votar na eleição para presidente da República, em 2018. Moradora do Recife, foi aplaudida na sessão eleitoral onde votava, em Bezerros, sua cidade natal, no Agreste do Estado. “Fizeram questão de fazer fotos com ela”, conta, orgulhosa, a filha Ana d’Azevedo, 62. Vovó Lenira ou Tia Lenira, como sempre a chamavam, tinha uma saúde perfeita. “O coração dela era melhor do que o de muito jovem de 20 anos”, emenda a filha. No dia 13 de abril, a vitalidade e a energia de uma vida inteira perderam a batalha para o coronavírus. Dona Lenira havia completado 102 anos, exatamente um mês antes.

A contaminação, a família acredita, ocorreu no hospital. É que cerca de dez dias após o aniversário, ela levou uma queda, enquanto separava o lixo reciclável de casa. Quebrou o fêmur e precisou passar por uma cirurgia. A operação foi um sucesso. Voltou para casa disposta e com boa recuperação. A preocupação surgiu quando ela começou a dar sinais de indisposição, sem vontade de ler o jornal de todo dia. Quando a família decidiu levá-la para o hospital, a recuperação já foi mais lenta, ela terminou sendo transferida de unidade e logo em seguida foi para a UTI. “Os médicos acharam que podia ser o vírus. A partir do momento que coletaram amostra para o exame, não pude mais visitá-la”, conta o neto João Paulo.

Guerreira, dona Lenira resistiu por nove dias. “Ela não melhorava, mas também não piorava. Isso nos enchia de esperança. Porque ela sempre foi muito apegada à vida. Se não fosse o vírus, teria vivido mais uns bons anos”, diz João Paulo. A despedida marcou o neto profundamente. “Foram só quatro familiares no sepultamento. Isso foi o pior. Pelo tanto que ela era querida, foi um enterro muito solitário. Ela era uma mulher de muita religiosidade. Se fosse em outro momento, dezenas de pessoas estariam lá para prestar as homenagens que ela tanto merecia.”

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