A descaracterização paisagística de Olinda põe em risco o título de Patrimônio da Humanidade — concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) há 40 anos. A preocupação foi relatada ao JC por integrantes do Conselho de Preservação da cidade, órgão legitimado pela própria Unesco para balizar as decisões urbanísticas que nela interferem.
Uma série de características naturais e urbanas, como sua arquitetura, foram consideradas para que Olinda se tornasse uma cidade-patrimônio em 1982. Mas a falta de conservação, que vem acontecendo em um processo acelerado que já dura décadas, afasta Olinda da descrição feita pelo então secretário de cultura Aloísio Magalhães no ano da inscrição ao título.
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Para o fundador do Conselho de Preservação e representante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-PE) no grupo, Jorge Tinoco, “tudo corrobora severamente para a perda de título”. “Pelo quadro político do Brasil e pela situação da cidade, não é exagero dizer que pode acontecer. A preocupação é de muito tempo. Tanto que uma missão da Unesco veio à cidade entre os anos 80 e 90 porque já se falava do risco; mas nada além de promessas foi feito”, disse ele.
O pensamento é endossado pela arquiteta e urbanista Vera Millet, que integra o conselho respondendo pela Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (Sodeca). "Isso não é um achismo. Está fundamentada na leitura e acompanhamento das perguntas e informações contidas no questionário da Unesco com vistas ao Monitoramento do Centro Histórico de Olinda."
Agora, Tinoco pressiona pela elaboração de estudos que mostrem as interferências negativas na cidade, para que, assim, a gestão municipal, junto à estadual e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), possam elaborar planos de recuperação do Sítio Histórico. “Precisamos fazer um estudo que demonstre a Olinda de quando foi declarada e a de hoje, porque os atributos e os valores daquela época já não existem mais”, pontuou.
O que mudou?
Uma das principais preocupações é a predominância de construções irregulares, hoje presentes em vários pontos do Polígono de Preservação rigorosa, como no acesso ao Convento do Monte. Na Comunidade V8, no Varadouro, ainda, a reportagem observou imóveis com quantidade de pavimentos acima do permitido pela legislação municipal (dois pavimentos).
Outra é a perda de área da mata verde do Antigo Horto Botânico (Horto D'el Rey) e dos manguezais que cercavam o Varadouro. “Há um processo de adensamento da população, ocupação dos quintais e remoção da vegetação. As áreas de mangues e rios foram sendo invadidas. Agora só tem um trecho pequeno do manguezal perto da Avenida Presidente Kennedy”, descreve Vera Millet.
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Os integrantes do Conselho de Preservação consultados pelo JC também alegam um distanciamento entre a gestão e o órgão, que é formado por 14 representações, sete da sociedade civil e sete de instituições públicas. Eles denunciam que há um constante desrespeito às decisões tomadas pelo grupo e falta de consulta sobre recentes obras na área preservada, como o emassamento e pintura em amarelo ouro das fachadas do Palácio dos Governadores e em outros imóveis protegidos, no Conjunto Monumental e no Casarão da Sé, o que, de acordo com Vera, nunca chegaram a ser discutidos.
Em agosto de 2021, a cidade de Liverpool, em Londres, tornou-se o terceiro patrimônio a ser rebaixado pela Unesco, justamente por construções modernas invadirem a arquitetura histórica da cidade. Antes disso, Dresden, na Alemanha, e o Santuário do Órix-da-arábia, em Omã, também perderam o título.
A Unesco afirma que "a perda do título só poderá ocorrer depois que o bem esteja inscrito na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo e quando forem esgotadas todas as medidas de reversão do quadro que colocam o sítio em risco", e que, até o presente momento, nenhum sítio brasileiro entrou para esta lista.
Cidade em análise pelo Iphan
Atualmente, o Iphan, representante da Unesco no Brasil nos processos relacionados ao Patrimônio Cultural, elabora o relatório que informa o estado de preservação da cidade. O processo é feito a cada dez anos para “identificar experiências positivas, assim como questões sensíveis apresentadas pelo bem, que precisam ser aprofundadas para dar continuidade às medidas de preservação”, segundo o Iphan.
Contudo, deixou claro que este processo, que faz parte das Diretrizes Operacionais instituídas em 2005 para Convenção do Patrimônio Mundial, “do ponto de vista da proteção, conservação e gestão, não fragiliza o reconhecimento do bem cultural como Patrimônio Mundial”. “A ação é fundamental para aferir o estado de preservação do valor universal excepcional dos bens”, afirmou.
A arquiteta e urbanista Natália Vieira, representante da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no Conselho, diz que, em meio ao processo de preenchimento do relatório, é o momento de “tirar do governo e da prefeitura compromissos assumidos sobre o que vai ser feito daqui para frente. Precisamos que haja um compromisso de mudança diante do que vem acontecendo”, cobrou.
O que diz a Prefeitura de Olinda
Por nota, a Prefeitura de Olinda afirmou que tem atuado “veementemente no monitoramento, controle e fiscalização, envolvendo todos os aspectos inerentes ao polígono de tombamento do Sítio Histórico da cidade e suas zonas de entorno”. Esclareceu que “não tramita no município qualquer solicitação de análise de obra” em relação à construção de conjunto habitacional na V8, e que as comunidades do entorno da Igreja do Monte e Barreira do Rosário recebem “orientação para intervenções arquitetônicas”, que fiscalizações são feitas permanentemente com o envio de notificações de ações irregulares verificadas no local, "encaminhadas à Procuradoria para as providências jurídicas cabíveis.”
Ainda, negou falta de diálogo com o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda, afirmando reunir-se, mensalmente, para deliberações neste perímetro da cidade. "Já a sua câmara técnica de análise dos projetos reúne-se rotineiramente, a cada semana." Por fim, ressaltou que “não existe qualquer notificação ou advertência à municipalidade sobre o risco de eventual perda” do título de Patrimônio da Humanidade.
Confira a íntegra das notas:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
O Centro Histórico da Cidade de Olinda foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial Cultural em 1982. Foi um dos primeiros bens brasileiros a receber esse título. O bem possui uma trajetória relacionada às políticas de gestão urbanística do Patrimônio Cultural, reconhecidas desde a década de 1980. É um dos primeiros sítios urbanos a ter um plano de gestão e conservação do Patrimônio Cultural, tornando-se pioneiro na América Latina.
Toda essa experiência precisa ser atualizada. As questões referentes aos instrumentos de proteção desse Sítio Urbano são alguns dos requisitos para a preservação dos valores excepcionais reconhecidos como importantes para a humanidade. Isso, em certa medida, contribui para a sua preservação.
Desse modo, está em vigor o III Ciclo do Relatório Periódico para bens reconhecidos pela Unesco como Patrimônio Mundial. Os relatórios fazem parte das Diretrizes Operacionais instituídas em 2005 para Convenção do Patrimônio Mundial, do ano de 1972. A ação é fundamental para aferir o estado de preservação do valor universal excepcional dos bens.
Cada Ciclo e monitoramento tem duração máxima de 10 anos e o último relatório organizado pelo Centro do Patrimônio Mundial da Unesco, para a região da América Latina e Caribe, foi organizado em 2012.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é o representante do Brasil perante a Unesco nos processos relacionados ao Patrimônio Cultural, sendo responsável por conduzi-los junto aos gestores locais e demais parceiros na gestão dos bens. Desde março, o Iphan está realizando oficinas de orientação e assessoramento para a compreensão do instrumento e apoio aos gestores para preenchimento do formulário com as questões relativas à proteção, conservação e gestão.
Assim, é importante destacar que, do ponto de vista da proteção, conservação e gestão, esse processo não fragiliza o reconhecimento do bem cultural como Patrimônio Mundial. Trata-se de um momento essencial para identificar experiências positivas, assim como questões sensíveis apresentadas pelo bem, que precisam ser aprofundadas para dar continuidade às medidas de preservação.
Prefeitura de Olinda
A Prefeitura de Olinda esclarece que tem atuado veementemente no monitoramento, controle e fiscalização, envolvendo todos os aspectos inerentes ao polígono de tombamento do Sítio Histórico da cidade e suas zonas de entorno. O trabalho é desenvolvido por meio de ações integradas, que envolvem diversas secretarias do município e é alvo de constantes operações.
Vale ressaltar, que mantemos um amplo diálogo com o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda, um órgão de natureza paritária, formado por sociedade civil e governo, em suas diversas esferas. O órgão reúne-se, mensalmente, para deliberações neste perímetro da cidade. Já a sua câmara técnica de análise dos projetos reúne-se rotineiramente, a cada semana.
Sobre os pontos relatados pela reportagem, a Prefeitura de Olinda ressalta que:
1. Em relação à construção de conjunto habitacional, na comunidade do V8, no Varadouro, a gestão municipal esclarece que, até o presente momento, não tramita no município qualquer solicitação de análise de obra deste porte.
2. Sobre as áreas do entorno da Igreja do Monte e Barreira do Rosário, ambas as comunidades já foram contempladas pelo ATHIS (Assessoria Técnica de Habitação de Interesse Social), que presta o serviço de assessoria técnica e social à população. Dentre as atribuições está a orientação para intervenções arquitetônicas (reforma, pintura, pequenos serviços, entre outros). Ademais, a gestão do município também realiza, permanentemente, fiscalizações e executa a notificação de ações irregulares, verificadas no local, sendo encaminhadas à Procuradoria para as providências jurídicas cabíveis.
3. Sobre a citada demolição, no imóvel localizado na Rua do Sol, 85, a Prefeitura de Olinda esclarece que se tratou de ação realizada de forma irregular, sendo registrada em setembro de 2021, no período noturno, por volta das 23h. Na ocasião, foram acionadas as equipes da SEPACTUR e SEMAPU, que foram ao local atestar o fato. Em decorrência, foi registrado uma ocorrência policial, junto a Delegacia do Varadouro, que deu origem a um processo administrativo, com embargo da referida construção e aplicação de multa ao infrator, configurando ilegalidade.
4. Todos os bares, restaurantes e demais estabelecimentos comerciais, instalados no Sítio Histórico, são periodicamente alvo de fiscalização sobre o seu funcionamento. As ações incluem punições, advertências e, eventualmente, suspensão e/ou encerramento das atividades, diante das irregularidades verificadas.
5. Todas as pinturas de natureza artística, no âmbito do Sítio Histórico, são reguladas e disciplinadas pela resolução 27/2019 do CPSHO (Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda). A referida resolução determina as áreas permitidas para a execução, estabelecendo pontos de baixa, média e alta restrição, sendo necessária a avaliação, caso a caso, observando seu enquadramento.
6. A Prefeitura de Olinda ressalta, ainda, que todas as cidades que detém o título de Patrimônio Mundial no Brasil são, a cada 10 anos, objeto de monitoramento das suas atribuições, sendo uma prática comum, prevista pela Unesco. O órgão encaminha tal monitoramento ao Iphan, a quem cabe provocar todas as cidades para as devidas respostas. Em relação a Olinda, todas as nossas equipes estão empenhadas neste propósito, correspondendo aos requisitos impostos pelos órgãos citados. Vale ressaltar, que não existe qualquer notificação ou advertência à municipalidade sobre o risco de eventual perda deste título. Ademais, neste ano, Olinda comemora 40 anos de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade.