No dia 28 de junho de 2021, três senadores apresentaram uma notícia-crime contra Jair Bolsonaro (sem partido). Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) defendem haver indícios de que o presidente da República cometeu crime de prevaricação ao não pedir que autoridades competentes, como a Polícia Federal e o Ministério Público, investigassem as denúncias de irregularidades na compra da vacina Covaxin. Desde o depoimentos do servidor Luis Ricardo Miranda, do Ministério da Saúde, e o irmão dele, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), o termo prevaricação ganhou força entre os opositores de Bolsonaro.
Já na noite dessa sexta-feira (2), a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura do inquérito para investigar se Bolsonaro cometeu crime de prevaricação por supostamente não ter comunicado aos órgãos de investigação indícios de corrupção nas negociações para compra da Covaxin pelo Ministério da Saúde.
Em uma decisão de sete páginas, a ministra afirma não ver 'óbices' à instauração da investigação. "Estando a pretensão investigativa lastreada em indícios, ainda que mínimos, a hipótese criminal deve ser posta à prova", escreveu. Rosa observou ainda que a abertura da apuração não tem relação com qualquer juízo de valor antecipado sobre eventual responsabilidade criminal do presidente.
"Sem embargo, não é demasiado consignar que a autorização para a apuração da materialidade e autoria de fatos alegadamente criminosos não implica, em absoluto, a emissão antecipada de qualquer juízo de valor a respeito da responsabilidade criminal do investigado, em benefício do qual vigora a presunção constitucional de inocência", diz outro trecho da decisão.
Na avaliação da ministra, os elementos iniciais coletados na comissão parlamentar são suficientes para embasar a hipótese criminal agora sob investigação. "Indicativo de possível conduta que, ao menos em tese, se amolda ao preceito primário de incriminação tipificado no artigo 319 do Código Penal, sem prejuízo de outros ilícitos que possam vir a ser desvendados no curso das apurações", afirmou Rosa Weber.
Mas afinal, o que é prevaricação?
Segundo o Código Penal brasileiro, o crime de prevaricação ocorre quando um funcionário público "retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". No caso de Bolsonaro, ele não teria comunicado uma eventual irregularidade para outras autoridades investigarem. O Código Penal prevê pena de três meses a um ano de prisão e multa.
O que Bolsonaro não teria comunicado?
Na CPI da Covid, no Senado, os irmãos Miranda denunciaram "pressão atípica" pela aceleração da compra da vacina. Eles relataram ter informado a Bolsonaro as pressões sofridas pela liberação da vacina indiana Covaxin e que as negociações foram travadas após Luis Ricardo identificar indícios de irregularidades nos documentos, como um pagamento antecipado de US$ 45 milhões a uma empresa que não constava no contrato.
A oposição quer investigar se o presidente incorreu no delito ao deixar de comunicar investigadores sobre o assunto. Embora Bolsonaro tenha dito que iria avisar à Polícia Federal, nenhum inquérito sobre o assunto foi aberto. Porém, a Lei aponta para a necessidade de se demonstrar com provas que o agente público acusado tinha a intenção de barrar, por exemplo, a investigação de um outro delito.
"Simplesmente um erro [do agente] não pode ser considerado prevaricação. Senão, qualquer escolha errada poderia ser um crime. Engessaria totalmente qualquer administração federal, estadual ou municipal", explicou o juiz Eduardo André Brandão, presidente da Associação dos Juízes Federais, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
Ricardo Barros
O deputado Luís Claudio Miranda (DEM-DF) afirmou, ainda, que durante a reunião com Bolsonaro para mostrar as irregularidades, o presidente teria dito que sabia que um deputado da base do governo estava envolvido no caso e que levaria a denúncia ao delegado-geral da Polícia Federal, o que não foi feito. Questionado pela CPI da Covid, no Senado, sobre quem seria esse deputado, Miranda disse que Bolsonaro se referia ao líder do governo no Congresso, o deputado Ricardo Barros (PP-PR).
Para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), o presidente prevaricou ao não pedir investigação sobre o caso. "O presidente não mandou investigar absolutamente nada", afirmou. "Para quem joga pedra em todos, ele prevaricou. Prevaricou", disse. Em nota publicada nas redes sociais, Barros afirmou que não participou "de nenhuma negociação em relação à compra das vacinas Covaxin."
O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), disse que a comissão agora investiga se houve desvio de dinheiro e beneficiamento pessoal na compra da vacina indiana. "Essa negociação da Covaxin é completamente eivada de irregularidade e de fraude, em todos os sentidos. Primeiro, a vacina com o menor tempo de validade e o maior preço. Segundo, a única aquisição que tinha um atravessador – a Precisa. Terceiro, esse atravessador pediu adiantamento e indicou para receber uma outra empresa constituída em paraíso fiscal, para claramente burlar o controle e a fiscalização. Então, com a vinda dos irmãos Miranda, nós possibilitamos esse grande dia", afirmou.
Polícia Federal
Em 24 de junho, o jornal Folha de S. Paulo divulgou que a Polícia Federal não identificou nenhuma investigação sobre supostas irregularidades na aquisição de doses da vacina Covaxin por R$ 1,6 bilhão. Um dia antes, o ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) não citou nenhuma apuração sobre a denúncia que Miranda diz ter feito ao presidente da República. Além disso, afirmou que as provas apresentadas pelos irmãos Miranda eram fraudulentas e que ambos deveriam ser investigados sob suspeita de denunciação caluniosa.
Porém, no dia seguinte, Onyx passou a divulgar, por meio de aliados na CPI da Covid, que o presidente havia repassado a denúncia dos irmãos Miranda para o então ministro Eduardo Pazuello (Saúde) apurar. Este, segundo Onyx, não identificou nenhuma irregularidade e as negociações prosseguiram.
Covaxin
As negociações para a compra da Covaxin estão sendo investigadas também pelo Ministério Público Federal. A aquisição do imunizante envolveria uma empresa intermediária (Precisa Medicamentos) entre o Ministério da Saúde e a fabricante estrangeira. Além disso, um dos sócios da Precisa é investigado por meio de outra empresa sob suspeita de ter recebido R$ 20 milhões do Ministério da Saúde e não ter entregado os medicamentos pagos.
Segundo o jornal Estado de S. Paulo, a CPI obteve telegrama sigiloso enviado em agosto ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi informando que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose. Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), o que fez da Covaxin a mais cara das seis vacinas compradas até agora pelo Brasil. Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, diz que as doses do imunizante são vendidas ao exterior a valores que variam de US$ 15 a US$ 20.
O valor final aceito pelo governo brasileiro chama atenção também porque Pazuello afirmou à CPI que um dos motivos para sua gestão recusar a oferta de 70 milhões de doses da americana Pfizer em 2020 seria o preço alto do imunizante. A vacina, porém, foi oferecida ao Brasil por US$ 10, metade do que a própria farmacêutica cobrou dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
CPI
Após o depoimento do servidor Luis Ricardo Miranda, a CPI da Covid aprovou a quebra de sigilo telefônico, fiscal, bancário e telemático do tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde na gestão Pazuello. Ele teria sido um dos responsáveis pela pressão para a compra da vacina. Marinho também deve depor na comissão. O sócio-administrador da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, também deve ser ouvido na CPI.
A Precisa diz que "as tratativas entre a empresa e o Ministério da Saúde seguiram todos os caminhos formais e foram realizadas de forma transparente junto aos departamentos responsáveis do órgão federal". Depois que a denúncia dos irmãos Miranda veio à tona, o presidente passou a afirmar que não houve nenhuma irregularidade porque o governo federal não desembolsou os recursos para comprar as 20 milhões de doses da Covaxin.
"Não gastamos um centavo com a Covaxin, não recebemos uma dose de vacina da Covaxin, que corrupção é essa? Ele não falou em nada de corrupção em andamento. Ele conversou comigo sim, não vou negar, mas não aconteceu nada", afirmou Bolsonaro na live transmitida em 24/06. Além disso, o governo federal tem avaliado cancelar a compra.
Procuradora
A procuradora da República Luciana Loureiro, que investiga a compra da Covaxin, afirmou à Folha de S. Paulo que o fato de o governo Bolsonaro ter reservado os R$ 1,6 bilhão já configura prejuízo à saúde pública. Segundo ela, isso se dá porque o governo autorizou o gasto em fevereiro, mas até hoje não recebeu as doses contratadas que já deveria ter recebido (o que configuraria quebra do contrato, mas o Ministério da Saúde deixou de cobrar a empresa). "Enquanto houver a nota de empenho, enquanto ela estiver válida, o recurso está reservado para isso", afirmou Loureiro.
PGR
A Procuradoria-Geral da República pediu nessa terça-feira (29) à ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, para aguardar as conclusões da investigação da CPI da Covid sobre a compra da vacina Covaxin antes de decidir sobre a notícia-crime contra Bolsonaro.
Weber é a relatora do pedido de investigação feito pelos senadores Randolfe, Fabiano e Kajuru. No dia 28, após o pedido ter sido apresentado ao tribunal, a ministra enviou o caso ao Ministério Público, em um procedimento de praxe e previsto nas regras internas do STF. O parecer da PGR é assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros.
"Se o Poder Legislativo está a investigar com excelência comportamentos aparentemente ilícitos com todas as competências necessárias, qual seria o motivo para que no Supremo Tribunal Federal abra uma investigação concorrente, tomada por freios e contrapesos institucionais e sem igual agilidade?”, diz o texto do parecer.
Ainda segundo o vice-PGR, seria “por demais extraordinário” se o Ministério Público saltasse de uma notícia-crime para uma ação penal, como pleiteiam os senadores, sem a necessária realização de uma investigação". Os resultados da investigação da CPI, de acordo com a Constituição, devem ser remetidos ao Ministério Público para a responsabilização dos eventuais culpados.
Bolsonaro
No mesmo dia em que a notícia-crime foi apresentada, o presidente Jair Bolsonaro disse que não tem como saber tudo o que acontece nos ministérios. O presidente comentou as suspeitas em conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada.
“Eu nem sabia como é que estava a tratativa da Covaxin, porque são 22 ministérios. Só o ministério do Rogério Marinho tem mais de 20 mil obras. O do Tarcísio não sei, deve ter algumas dezenas, centenas de obras. Eu não tenho como saber. O da Damares, o da Justiça, o da Educação. Não tenho como saber o que acontece nos ministérios, vou na confiança em cima de ministro, e nada fizemos de errado”, disse.
Sobre o encontro com os irmãos Miranda Bolsonaro afirmou: "Foi corrigido nos dias seguintes que o cara esteve aqui. Aqui vem tudo que é tipo de gente, pessoal. Eu não posso falar: ‘você é deputado deixa eu ver a sua ficha aí’, ia receber pouca gente, eu recebo todo mundo", completou, se referindo ao encontro que teve com os irmãos Miranda, em março – e no qual eles alegam ter alertado Bolsonaro sobre o suposto problema.
O presidente disse ainda que a emenda de R$ 1,6 bilhão para a compra da vacina partiu do Congresso. "Não recebemos uma dose, não pagamos um centavo, mas a emenda para a Covaxin veio deles. Randolfe [Rodrigues] como relator, do irmão do Renan [o deputado Renildo Calheiros] e do próprio Omar Aziz [presidente da CPI]", afirmou o presidente, que disse que os senadores opositores que fazem parte da CPI da Pandemia "inventaram a corrupção virtual".
Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde suspendeu nessa terça-feira (29) o contrato de compra de 20 milhões de doses da vacina Covaxin com a Precisa Medicamentos. A suspensão ocorreu no mesmo dia em que a Precisa solicitou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a autorização para o uso emergencial da Covaxin no país.
O anúncio foi feito pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. "Por orientação da Controladoria-Geral da União, por uma questão de conveniência e oportunidade, decidimos suspender o contrato para que análises mais aprofundadas sejam feitas", disse.
Queiroga ainda afirmou que o próprio Ministério da Saúde vai fazer uma "apuração administrativa" a fim de verificar todos os aspectos da compra da vacina. O ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, afirmou que a suspensão do contrato é uma medida preventiva. "Visto que existem denúncias de uma possível irregularidade que não conseguiu ser bem explicada pelo denunciante", explicou.