Em fevereiro deste ano, a Câmara dos Deputados soube após questionar o Ministério da Educação, que uma comissão montada pelo governo Jair Bolsonaro para avaliar as questões aplicadas no Enem, em 2019, pediu a exclusão de 66 perguntas sem consultar a equipe técnica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Na época, um parecer não apresentava o conteúdo das questões, apenas os resultados das análises. Agora, a revista Piauí teve acesso às justificativas dessas intervenções e mostrou diversos itens analisados e 'barrados' pela comissão.
As questões fazem parte do Banco Nacional de Itens (BNI). Entre elas, 18 eram itens pré-testados e 48 eram itens novos. De acordo com os avaliadores, essas perguntas apresentavam "leitura direcionada da história", "leitura direcionada do contexto geopolítico", e "polêmica desnecessária". Em um dos itens, foi sugerido alterar o termo "ditadura" por "regime militar".
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De acordo com a reportagem da Piauí, a maior parte das perguntas foi censurada por provocar “polêmica desnecessária”. Ao todo, 28 perguntas foram excluídas e substituídas. Entre elas estavam questões sobre gravidez na adolescência, feminismo, religião e o contexto político e social dos últimos anos do Brasil.
Também foram excluídas seis perguntas sobre o período ditatorial militar brasileiro. No parecer da comissão governamental alegou “descontextualização histórica do texto” para a maior parte dos itens.
As informações constam documento no qual integrantes do Inep pediam a reinclusão de parte das questões censuradas. Reunidos ao longo de dez dias em março de 2019, os integrantes usaram carimbos de “sim” e “não” para aprovar ou rejeitar questões.
Discutir feminismo, por exemplo, foi proibido na prova. Uma questão de ciências humanas que falava sobre a Marcha das Vadias, mostrando uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação do grupo, foi barrada por gerar “polêmica desnecessária”.
Uma outra questão, dessa vez na prova de ciências da natureza, falava sobre os cuidados com relação ao vírus HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. “Gera polêmica desnecessária / Direcionamento do controle de saúde”, assinalou a comissão.
Segundo a Piauí, as justificativas constam em uma planilha de Excel, que não explicita os motivos para as escolhas, tampouco o que seria a “polêmica desnecessária”.
A comissão teria sido criada pelo então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, atendendo um pedido do presidente Jair Bolsonaro. O grupo era composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação.
Mafalda
Entre as questões retiradas estava uma tirinha de Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino. Em conversas com a mãe, com o pai e com os amigos de escola, a menina expressa seu inconformismo diante do mundo. Numa dessas tirinhas, publicada originalmente cinquenta anos atrás, Mafalda, prestes a entrar para o jardim de infância, nota que sua mãe está apreensiva com a nova fase na vida da filha. Por isso, Mafalda tenta tranquilizá-la: “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”
De acordo com a Piauí, esse famoso diálogo entre Mafalda e sua mãe não agradou a uma comissão montada pelo governo. “Gera polêmica desnecessária”, concluiu a comissão, ao justificar por que decidiu censurar a questão que trazia a personagem argentina.
Uma outra questão falava sobre segurança pública e mencionava, em uma das alternativas de resposta, a violência da polícia na Bahia. Foi censurada por ser "ofensiva à força policial baiana", apontou o trio de censores.
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Uma questão que apontava problemas na redução da maioridade penal, tema defendido por Bolsonaro naquele ano, também foi reprovada.
Os documentos divulgados agora mostram que em 2019 houve censura até à poesia de Manoel de Barros. A questão surgiu de “O Livro das Ignorãças”.
Contrariando a Bíblia, Manoel escreveu: “No descomeço era o verbo”, uma oposição a “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus (João 1:1-4)”. Na justificativa dos censores, usar tal verso “fere sentimento religioso e a liberdade de crença.”
A comissão de censura do Inep usou a palavra liberdade para proteger sentimentos religiosos. Mas ignorou-a ao excluir da prova de ciências humanas uma charge da cartunista Laerte que, segundo o registro dos servidores, propunha uma “reflexão crítica sobre o reconhecimento à diversidade na sociedade contemporânea”. Ao censurar a charge, a comissão fez o seguinte comentário: “Leitura direcionada da história / Direcionamento do pensamento.” Ao excluir uma outra questão, dessa vez na prova de matemática, os censores do Inep foram além: disseram que o item “gera polêmica desnecessária em relação à ideia de casal”.
Outra questão, que citava uma letra de música escrita por Chico Buarque (não se sabe qual), foi censurada com a seguinte explicação: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Os servidores pediram que a exclusão fosse revista.
Por fim, a Piauí mostra que, na área de linguagens, um texto falava sobre uma tragédia ocorrida em 2013, na cidade de Burkesville, nos Estados Unidos: um menino de 5 anos disparou acidentalmente um fuzil que havia ganhado de presente e matou sua irmã mais nova dentro de casa.
O objetivo do item, segundo os servidores, era discutir o risco existente “em ambientes domésticos em que há a possibilidade de acesso à arma por crianças”. Mas a comissão de censura do Inep não achou que o tema deveria ser apresentado aos 5,1 milhões de alunos que se inscreveram no Enem em 2019. A questão foi banida da prova sob a alegação quase onipresente nas justificativas dos censores: “polêmica desnecessária.”
Em 2018, o presidente Jair Bolsonaro criticou uma questão de linguagens do Enem que falava sobre o pajubá, um conjunto de expressões associadas aos gays e travestis e disse que iria "tomar conhecimento da prova antes".
A comissão foi criada em março de 2019. Na época, o Inep informou que nenhuma questão seria descartada, já que o processo de elaboração é "longo e oneroso".
Ainda de acordo com o Inep, as questões consideradas "dissonantes" seriam "separadas para posterior adequação, testagem e utilização, se for o caso". O Inep nunca havia divulgado o resultado dessas análises.
Na edição do Enem 2020, duas questões tiveram o gabarito alterado após críticas de que as respostas consideradas corretas incitavam o racismo.
Uma delas apontava como correta uma alternativa que dizia que a mulher negra que não quer alisar seu cabelo tem argumentos "imaturos". Outra afirmava que o Google associava nomes de pessoas negras a fichas criminais por causa da "linguagem", não do "preconceito".