Atualizada no dia 17 de dezembro de 2021 às 20h29
Prestes a assumir oficialmente o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) - com posse marcada para esta quinta-feira (16) - André Mendonça vai herdar uma série de ações que estavam sob a relatoria do seu antecessor, Marco Aurélio Mello.
Entre os mais de mil processos aguardando para serem julgados, está o questionamento, por parte do PSOL, de duas leis municipais de Garanhuns, no agreste, e Petrolina, no sertão pernambucano, que proíbem ensino sobre "Ideologia de Gênero" nas escolas. O termo é comumente utilizado por grupos contrários à discussão sobre gênero e sexualidade dentro do ambiente escolar.
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Ideologia de gênero é um tema caro para Mendonça. Ele encarnou a figura de ministro "terrivelmente evangélico" levantada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e teve o apoio decisivo da bancada evangélica do Congresso Nacional para a aprovação do seu nome no Senado. Os seus primeiros passos na carreira de ministro estarão sobre os olhos atentos não só da comunidade religiosa, mas da política como um todo.
O PSOL entrou em junho de 2018 com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 522 contra as duas leis, ambas sancionadas no ano de 2017. Na ação, o partido argumenta que elas ferem a Lei de Diretrizes e Bases Nacional (LDB) e a Constituição Federal de 1988, no que diz respeito à "laicidade do estado e dos direitos fundamentais à igualdade, à liberdade de ensino e de aprendizado, à proteção contra censura e à liberdade de orientação sexual", diz nota do PSOL enviada ao JC.
Segundo explica o advogado do PSOL André Maimoni, a ação do partido está fundamentada no princípio da incompetência dos municípios de legislarem sobre matéria de diretrizes e bases da educação nacional, que cabe à União. Questão que já está pacificada dentro do STF pois já houve decisões anteriores na Corte pela incompatibilidade desse tipo de legislação municipal.
"Não é só por uma questão ideológica, porque na nossa opinião essas leis são uma tentativa de burlar a necessidade de discutir sexualidade e gênero nas escolas", disse. Em agosto de 2020, por exemplo, o STF julgou inconstitucionais três leis de Paranaguá (PR), Palmas (TO) e Londrina (PR) que vedavam o ensino sobre gênero e orientação sexual nas escolas.
A ação contra as leis de Petrolina e Garanhuns foi incluída na pauta do plenário virtual em junho deste ano. Marco Aurélio Mello, relator da ação, votou pela sua procedência, porém o ministro Kássio Nunes Marques pediu destaque. O julgamento então foi suspenso, retirado da pauta do plenário virtual e consequentemente, só pode voltar para a apreciação dos ministros no plenário presencial. "Ocorre que a pauta está altamente congestionada e o tema não tem mais prioridade no STF", afirmou ainda o PSOL na nota.
"O feito ainda não foi redistribuído. No presencial o julgamento recomeça, e, apesar de alguma controvérsia, uma vez que o relator já lançou voto, poderia significar que o Min. Mendonça poderia votar", completou o PSOL.
André Mendonça
André Mendonça é o segundo ministro indicado por Bolsonaro para o STF, André Mendonça além de ser ex-controlador geral da União, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, é também pastor presbiteriano. Em seu discurso após a sabatina no Senado, ele classificou a sua ida para a corte como "um salto para os evangélicos".
"A dúvida que fica é qual tipo de lei ele vai aplicar, se é a lei do estado brasileiro que prevê a liberdade para você trabalhar aquele assunto ou se é a lei de Deus. Na igreja você pode com os dogmas fazer imposições contra a diversidade de gênero, mas ele como ministro do STF não pode se deixar contaminar pelas suas visões religiosas, porque a lei que ele deve aplicar no supremo é a Constituição e não a bíblia", aponta o professor de Direito Constitucional Marcelo Labanca.
Antes, na sabatina, a postura de Mendonça foi um pouco diferente. Ele adotou um tom mais moderado, garantindo o respeito à Constituição acima de suas convicções religiosas. "Na vida, a Bíblia; no STF, a Constituição", disse.
Para Labanca, isso se deu por conta do contexto da sua nomeação ao STF, em prol do convencimento dos senadores de que ele era o nome ideal para assumir o posto. Ele foi o ministro que passou mais tempo com a indicação suspensa sem apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, uma vez que o presidente do colegiado Davi Alcolumbre (DEM) era contra o seu nome. Também foi o que teve a votação mais apertada: foram 47 votos a favor e 32 contra.
"Ser ministro nunca pode ser um projeto individual, tem que ser um projeto coletivo, você tem que saber quem é que vai lhe carregar. Ele se apoiou na bancada evangélica e ele conseguir se tornar ministro do supremo, pelo menos durante os primeiros anos do seu cargo, eu acho que ele vai ficar um pouco contaminado por essa visão religiosa", afirmou.
André Maimoni lembra que o relator é peça importante da ação, mas não é determinante para o seu julgamento. "A gente espera que tenha tramite, que os ministros do supremo mantenham a jurisprudência que eles já construíram. Boa parte dessa composição atual já se manifestou contraria a essas legislações", disse.
Ainda assim, de acordo com ele, o PSOL vê com preocupação o fato da relatoria ter ido para as mãos do novo ministro, por conta do seu histórico. "Outra coisa que traz preocupação é a forma como ele foi nomeado e as promessas ao grupo que o apoiou que ele deve ter feito. É possível que haja uma pauta e aí inclui-se a resposta a esse segmento político social e econômico muito importante brasileiro que o apoiou, fizeram lobby e o elegeram", projetou.
O presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Sergio Pessoa, acredita que o momento é precoce para prever o posicionamento do ministro. "Porém com base as declarações dadas pelo o mesmo durante a sua sabatina, ele demonstrou ser sensível a pauta e repudiar a violência. Mas vamos ter que aguardar e espero que o mesmo venha dar a decisão conforme os princípios constitucionais dito em declaração da sabatina", disse.
O professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Gustavo Ferreira Santos acredita que o julgamento desta ação vai ser o bom teste para Mendonça.
"Na suprema corte americana tem casos de juízes que tem uma posição um pouco mais conservadora mas do ponto de vista político, moral, ele reconhece que aquilo ali tem fundamento na Constituição. Mas a gente só vai saber a posição dele como jurista quando ele começar a julgar", afirmou.
Leis
A lei de Petrolina (Lei nº 2.985/2017) proíbe especificamente o ensino da disciplina “Ideologia de Gênero” ou outra que “tente orientar a sexualidade dos alunos ou que tente extinguir o gênero masculino ou feminino como gênero humano”. Ela também veda a existência de qualquer livro, seja didático ou não, que trate sobre o assunto direta ou indiretamente.
A lei é de autoria do então vereador Elias Jardim (na época no PHS), e foi sancionada pelo prefeito Miguel Coelho (DEM). Ao JC, ele conta que a Câmara tirou trechos do Plano Municipal de Educação que tratavam sobre gênero, mas depois disso sentiu a necessidade de criar uma lei proibindo o tema expressamente.
"Ficou um tempo na comissão, a comissão de Constituição e Justiça segurando, mas aí eu fui pressionando e com jeito o projeto foi para a pauta. No dia da votação, a gente conseguiu a aprovação apenas com dois votos e em Petrolina é lei, é proibido ensinar sobre isso aí. Apesar que a gente sabe que a lei maior, se vier de cima, quebra a força da lei menor que é a lei criada no município. Mas de qualquer maneira até aqui tem segurado", afirmou.
Gustavo Ferreira Santos questiona a efetividade da lei de Petrolina, por considerar “Ideologia de Gênero” um conceito abstrato e fora da realidade das escolas. me parece que setores incomodados com qualquer discussão sobre orientação sexual, gênero, nas escolas usam essa expressão para criar um monstro como se fosse uma ideologia que tenta subverter a sexualidade dos jovens e adolescentes", disse.
O professor acredita que o STF vai dar uma interpretação às leis a partir da Constituição "de forma que não proíbe a abordagem de gênero nas escolas", disse. "Porque qualquer tipo de vedação de conteúdo pelo legislador, pelo administrador, tem que ser interpretada de forma restritiva, precisa ser muito bem justificada", completou.
Ele trouxe o exemplo da Alemanha, que proibiu o uso do livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler nas escolas alemãs. “Porque foi tomado como fomentador de discurso do ódio, não é o caso aqui”, descartou.
Já a lei de Garanhuns (nº 4.432/2017) é de autoria do ex-vereador Audálio Ramos (MDB), sancionada pelo então prefeito Izaías Régis (PSDB). Ele saiu da Câmara para concorrer a vaga de vice-prefeito na chapa encabeçada por Zaqueu (PP) em 2020, mas eles não foram eleitos.
A lei proíbe a "temática referente à teoria de gênero, questões de gênero, identidade de gênero ou ideologia de gênero" nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Garanhuns, prática de atividades pedagógicas, inclusive extraclasse, e também na biblioteca pública.
Ao JC, Audálio Ramos alegou que a ideologia de gênero é uma questão mal explicada, e não tem a ver com orientação sexual.
"A ideologia de gênero é diferente de identidade de gênero, ela não confronta o artigo 5º da constituição que garante que todos são iguais perante a lei independente de sua orientação religiosa, sexual, étnica. É sim uma questão antropológica, porque a ideologia tenta deturpá-la quando ela nega que uma pessoa quando nasce já tem a sua sexualidade definida. Porque ela não é uma questão psicológica, e sim biológica antes de tudo", afirmou.
Audálio diz respeitar o contraditório no que diz respeito aos questionamentos à lei, mas considera que eles não tem fundamento. Segundo ele, o intuito do projeto foi defender o direito da família - prevista no artigo nº 226 da Constituição - que é o âmbito com legitimidade para discutir sobre as questões de gênero, segundo ele.
"Se a criança ou adolescente tem uma decisão, isso é uma coisa que tem que ser resolvida, e respeitada inclusive, seja na escola ou na sociedade, até porque o SUS não quer saber qual é a orientação sexual das pessoas, todos têm direito, a mesma coisa a escola, todos tem direito de acesso. Agora a decisão da pessoas não pode ser influenciada por professores ou por livros de literatura", completou.
Na época em que o projeto ainda estava sendo discutido na Câmara Municipal, o promotor de Justiça de Defesa da Cidadania do Ministério Público de Pernambuco em Garanhuns Domingos Sávio Agra expediu uma recomendação pedindo para que ele não fosse aprovado.
De acordo com o promotor, a lei não vem sendo aplicada pela Secretaria de Educação de Garanhuns. "Na época ouvimos a Secretaria de Educação e chegamos a conclusão que a lei na prática não estava afetando a liberdade de ensino, de aprendizado, de tratar das questões atinentes a sexualidade, a pessoa em geral, então não temos notícia de aplicação dessa lei que no nosso entender é totalmente inválida", disse.
Na avaliação do promotor, ela vai de encontro não só à Lei de Diretrizes e Bases Nacional e a Constituição Federal - como aponta o PSOL na ação - mas também ao Plano Nacional e Municipal de Educação.
"No final das contas, essa proibição é um estímulo a discriminação, porque vai negar o fato da vida, da realidade, vai negar aos estudantes, aos professores tratar de assuntos da vida cotidiana que é a diversidade de identidade de gênero é uma questão pessoal não só como cultural”, argumentou.
Na visão de Marcelo Labanca, uma lei que impede a escola de informar questões relativas à gênero para os seus alunos é inconstitucional, e pode implicar em um precedente ruim.
"Amanhã pode vir outra lei sobre algum outro assunto que seja um tabu ou uma questão sensível ideologicamente, depois de amanhã pode ser uma terceira lei, quarta, quinta, sexta. Isso representa uma tendência da retirada da liberdade de ensino, portanto é nítida a inconstitucionalidade dessa lei, que limita que as escolas de abordarem ações relativas a gênero com os seus estudantes", apontou.
As escolas ainda não vem formentando tanto o assunto em virtude dos “tabus” que envolvem o tema e por as vezes o tema já trouxe muitas informações equivocadas que fazem as escolas em sua maioria, ter um receio de debater o tema.
Mas o tema acima de tudo é necessário, pois uma escola que promova igualdade de gênero será também espaço para todos e todas e, quem sabe em um futuro, terá a potência de formar uma sociedade livre do ódio, violência ou perseguição.
Procurado pelo JC, o atual prefeito de Garanhuns, Sivaldo Albino (PSB) disse que irá aguardar a decisão judicial no STF. A reportagem não conseguiu contato com as secretarias de Educação de Petrolina e Garanhuns para confirmar se as leis de fato estão sendo cumpridas nos municípios.