Alceu Valença: o homem-frevo

PIQUE Símbolo da Festa de Momo, Alceu cantou seu primeiro frevo em público aos quatro anos de idade: o cantor tem agenda frenética em PE e em outros estados, e fala sobre relação com o Carnaval
Bruno Albertim
Publicado em 27/01/2018 às 0:58
PIQUE Símbolo da Festa de Momo, Alceu cantou seu primeiro frevo em público aos quatro anos de idade: o cantor tem agenda frenética em PE e em outros estados, e fala sobre relação com o Carnaval Foto: Diego Nigro / JC IMAGEM


Aos tenros quatro anos de idade, Alceu Valença cantou em público pela primeira vez. Ex-carteiro e comediante famoso na época pela TV Tupi, Luis Jacinto Silva, o Coronel Ludujero, recrutava talentos precoces para um concurso infantil de música. “Ele perguntou à minha tia Adeilda, que era professora, se ela não conhecia uma criança que cantasse. Ela disse: ‘Não conheço, mas o filho de Adelma, que é um danado, é capaz de ele cantar’”. Da voz angelical do menino, saíram justamente os versos do clássico É frevo, meu bem!. “Pernambuco tem uma dança, que nem uma terra tem. Quando a gente entra na dança, não se lembra de ninguém”, diz a letra de Capiba.

Depois de cantar no Cine-Teatro Rex de sua São Bento do Una, Alceu foi aplaudidíssimo, deu cambalhotas, perdeu o primeiro lugar e levantou a primeira sobrancelha de preocupação do pai. “Ele viu que eu tinha jeito para música, veio a questão na cabeça dele. Porque ele teve dois irmãos que estudavam e se formaram. E dois que faziam música, não se formaram, eram boêmios”, lembra o cantor e compositor. O pai estava certo. Ao deixar de exercer a carreira de advogado, depois de formado pela Faculdade de Direito do Recife em 1970, e de jornalista, como correspondente do Jornal do Brasil, Alceu não apenas se tornaria um dos verbetes obrigatórios da música popular brasileira, como, se aquela letra de Capiba tivesse a força de um vaticínio, assumiria a persona de homem-frevo. Recriador, um deles, do mais emblemático ritmo pernambucano, Alceu, como de costume, entra nesse Carnaval com gosto de gás. Vai ser preciso fôlego – e agenda – para acompanhar o bardo.

Depois de cantar e ser homenageado no Bal Masqué, hoje. No dia 7, anima o bloco das Muriçocas, em João Pessoa. Faz a abertura do Carnaval de Olinda, na quinta, 8, frequenta mais meia dúzia de bailes e shows na capital e no interior, o pólo do Alto Zé do Pinho, dia 12, e encerra, ao lado da parceira Elba Ramalho, de forma apoteótica, o Carnaval do Recife, na terça (13), no Marco Zero. “Só comecei mesmo a cantar frevo nos anos 1980, incentivado pelo meu parceiro Carlos Fernando. Fizemos vários frevos para o projeto Asas da América, onde eu cantava músicas como Homem da Meia-Noite e Voltei Recife. Aprendi a lição de Jackson do Pandeiro, que dizia: ‘Para cantar frevo, tem que ter queixada!’”

Antes, no sábado, 3 de fevereiro, Alceu transfere o Carnaval pernambucano para São Paulo. Pelo quarto ano consecutivo, ele comanda o Bloco Bicho Maluco Beleza, no Parque do Ibirapuera. Depois de Elba Ramalho estrear, no mesmo lugar, seu trio Frevo-Mulher, Alceu deve reunir, como ano passado, meio milhão de foliões. É, sim, uma franquia da folia pernambucana. “O Carnaval de Pernambuco é o grande espelho do Carnaval do Brasil. Mesmo na Bahia, o trio elétrico de Dodô e Osmar, e um deles era pernambucano, apareceu em função do frevo. Depois, é que entrou o axé”, pontua. “E tem essa coisa da economia criativa. Às vezes, as pessoas falam que o Estado gasta com o artista, mas ganha a indústria do turismo, o táxi, do dono do restaurante e o dono da pipoca. Todo mundo quer o Carnaval. Na década de 1970, vinha sempre muita gente pra cá, essas pessoas resolveram depois fundar seus blocos lá, como o Suvaco do Cristo, no Rio. São blocos que entram também noutra coisa, as marchas carnavalescas. As marchas-rancho começaram também no nosso Pernambuco. Migraram para lá e perderam a síncope, ficaram mais lentas”, pontua.

MARCO ZERO

Morando na casa de Alceu Valença, já no Rio de Janeiro, o caruaruense Carlos Fernando encampava o projeto Asas do Frevo. Nos anos 1980, sua Banho de Cheiro fez Elba Ramalho ganhar um disco de platina e enlouquecer o primeiro Rock in Rio com o primeiro frevo tocado em todas as FMs do País. No movimento, Alceu não sabia, mas ia modernizando e ampliando o alcance do frevo. “Aos poucos, minhas músicas foram se incorporando ao repertório popular do Carnaval de Pernambuco e do Brasil. Não foi planejado”, diz ele que, com um frevo gravado desde seu primeiro disco, o psicodelicamente complexo Alceu Valença & Geraldo Azevedo, arranjado pelo papa do tropicalismo Rogério Drupat, ia rompendo os cercos do gênero. “O que aconteceu é que existia aqui uma coisa chamada Mocambo. Era a gravadora de Nelson Ferreira, Caudionor Germano, fazia o frevo tocar o ano todo. Depois, quando acabou, o frevo parou de tocar fora do Carnaval”, diz ele, fonte de um outro novo espelho para o Brasil adotar o frevo como reflexo. Há doze anos, Alceu gravou, com várias participações, o DVD Marco Zero.

“Quando eu fui gravar, em pleno agosto, disseram que ninguém iria. Eu disse, vai e vai fantasiado. Usei a internet para fazer toda uma mídia. Eu me vestia de Rod Stewart, Maurício de Nassau, Caboclinho, só para excitar as pessoas”, diz ele, “vítima” de outro fenômeno digital. Nas últimas Olimpíadas no Brasil, ao interagir com um grupo de músicos anônimos cantando Anunciação numa esquina do bairro carioca do Leblon, onde ele mantém casa, o vídeo viralizou na internet. Teve mais de 3,2 milhões de visualizações mundo afora.

“Hoje, Anunciação é cantada até em basco”, diz. “E nem me pedem autorização”, ri ele, que se assume um cantor orgulhosamente sazonal. “Além dos meus shows de carreira, no Carnaval, canto frevo; no São João, canto forró. Tenho repertórios paralelos”, diz ele, em vias de gravar um DVD dedicado ao ritmo junino e homenageado em festivais de baião que assolam a Europa.
Marco Zero, o DVD, acabou virando uma síntese imagética do Carnaval de Pernambuco para o Brasil. Foi o que motivou a produtora paulistana Pipoca a se associar à produtora Tropicana para criar a franquia paulistana do bloco Bicho Maluco Beleza. Com a presença de Lia de Itamaracá, o bloco se propõe este ano a um novo marco. “Vamos fazer a maior ciranda do mundo”, promete.

Com novos ou antigos sucessos, um show carnavalesco de Alceu não tem como fugir à imposição dos próprios clássicos: Bicho Maluco Beleza, Me Segura Que Senão Eu Caio, Beijando a Flora, Frevo da Lua, Bom Demais, Vampira, Diabo Louro, Roda e Avisa, além de Voltei Recife e do Hino do Elefante. “Sei este repertório de cor”, enfatiza ele, de parcerias célebres como nomes como J.Michilles.

O Carnaval entrou na vida de Alceu, contudo, bem mais cedo que no Asas da América. Aos oito anos, quando se mudou para a Rua dos Palmares, no bairro recifense da Boa Vista, teve um de seus definitivos alumbramentos. “Era uma rua ‘carnavalódroma”, onde, além de maracatus e blocos, ele tinha, do lado esquerdo, a casa da poesia, onde morava o poeta Carlos Pena Filho. Do lado direito, a casa da música, onde residia o maestro Nelson Ferreira”, como cita no poema Encontro Marcado. Parte do livro O Poeta da Madrugada, lançado em 2015 pela editora portuguesa Chiado, o texto integra a obra não musicada de Alceu em que ele poetiza a geografia da sua subjetividade.

Apaixonado por Olinda “onde primeiro tomou banho de mar na infância”, Alceu para lá se mudou nos anos 1980. “Não existia essa coisa de show de artista ao ar livre. Saí com meu primo, Pezão, fui ali e cantei numa banda de apoio. Botava uma fantasia, entrava e saía de todos os blocos. O Carnaval foi entrando na minha música”, diz ele que, na época, estourava no País com os mais de 1,5 mil cópias vendidas do álbum Cavalo de Pau. “Naquela época, andava o Carnaval todo e uma só pessoa me pediu um autógrafo. Hoje, com o celular, é tanta selfie que a gente não dança um frevo”, ri ele, que já não brinca o Carnaval no calçamento. “Eu me divirto divertindo o público, no palco”.

 

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