O manuseio de smartphones por motoristas ao volante virou a nova praga do trânsito brasileiro. É o novo álcool da atualidade. Gerando danos e com uma perspectiva de gerá-los cada vez mais. Segurar, manusear e até usar o smartphone enquanto se conduz carros e motocicletas têm sido um hábito incorporado à rotina do trânsito.
E um hábito perigoso porque, estudos médicos da medicina de tráfego já concluíram que dirigir usando o celular provoca reações no condutor semelhantes à condução sob influência de álcool. O uso de smartphone é a terceira causa de mortes no trânsito no País, ficando atrás apenas do uso de álcool e do excesso de velocidade.
Mesmo assim, é um hábito que cresce assustadoramente e já é visto como prática comum. Ao ponto de parte da sociedade achar que combatê-la no trânsito faz parte do discurso fácil da “indústria de multas”. Por isso, é preciso falar sobre ela. Mostrar às pessoas que o risco é gigante. Alertar a sociedade que a distração provocada pela simples conexão com o celular ao volante mata, fere e mutila.
Além do próprio condutor, os outros que estão e fazem o trânsito - o que é o mais injusto. Para se ter ideia, diretrizes da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) apontam que o ato de digitar uma mensagem de texto enquanto se dirige faz com que o veículo seja conduzido por diversos metros sem o olhar atento do condutor, que chega a ficar, em média, 4,5 segundos sem prestar atenção na via.
CEM METROS ÀS CEGAS
Esse “lapso” pode ser catastrófico no trânsito. Dependendo da velocidade, o motorista poderá percorrer até 100 metros absolutamente desatento, tempo e distâncias suficientes para atropelar pedestres, ciclistas e colidir com outros veículos. “Enviar mensagens pelo WhatsApp, conduzindo um veículo a 80 km/h, equivale a estar dirigindo com os olhos vendados por um percurso nas dimensões de um campo de futebol oficial”, alerta o médico do tráfego Alysson Coimbra, diretor científico da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra) e integrante da Abramet.
Acredita?
E tem mais: o risco segue mesmo depois que a atividade ao celular foi finalizada. “Uma conversa no telefone celular mantém atividade mental direcionada à chamada mesmo após o término da ligação, permanecendo o risco de sinistro de trânsito em média de três segundos após o envio de uma mensagem de texto. Se o veículo estiver em velocidade média de 100km/h, percorrerá mais de 90 metros sob o efeito pós chamada”, alerta a Abramet.
Segundo as diretrizes da Abramet, o cérebro tem capacidade finita de disponibilizar neurônios para atividades que exigem atenção, não somando áreas cerebrais à utilizada isoladamente quando duas ou mais tarefas são exigidas. “A audição, a compreensão do que é dito e a fala, são condições que alteram a atividade cerebral quando realizadas em conjunto com a condução de veículos automotores. Uma ou mais tarefas em execução concomitante serão parcialmente negligenciadas pelo cérebro”, segue o alerta.
A FALHA DE ATENÇÃO E O PERIGO EM NÚMEROS
Todo o problema do uso do smartphone ao volante passa pela FAC (falhas de atenção ao conduzir). Segundo a Abramet, a média de sinistros fatais provocados por elas é de 14%.
Uma avaliação realizada em parceria com o Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo (IOT) , no autódromo de Interlagos, comprovou a relação. Os voluntários com o telefone celular na mão, realizaram guinadas bruscas no volante e curvas exageradas na execução de manobras simples para percorrer uma fileira de cones.
Não é mais acidente de trânsito. Agora, a definição é outra nas ruas, avenidas e estradas do Brasil
Conduzindo a 90 km/h, os voluntários reduziram a velocidade para 60 km/h durante uma conversa pelo celular e quase pararam na pista quando enviavam mensagens. Nos testes com barreiras de cones, só desviaram em cima da hora, demonstrando o quanto é difícil dirigir com a atenção dividida, principalmente quando precisam decidir rapidamente para evitar um sinistro de trânsito.
O uso do smartphone na direção de um veículo também é mais comum entre jovens, numa faixa etária inferior a 30 anos. E são as mulheres, em comparação com os homens, as mais propensas a se envolver em sinistros de trânsito ao dirigir distraídas. A dependência dos smartphones se tornou tão grande que, segundo a Abramet, um estudo de sinistros de trânsito nos EUA apontou que motoristas jovens relataram acessar sites enquanto dirigem e se sentirem “perdidos e desconfortáveis” sem o telefone celular.
ÁLCOOL É ERRADO, MAS CELULAR NÃO
Outro dado relacionado ao uso de celular na direção impressiona. A maioria dos motoristas minimiza os perigos de manusear o smartphone. Condena o hábito de dirigir alcoolizado, mas releva o de mandar mensagens de texto ao volante. 70% dos motoristas acreditam que direção e telefone celular não combinam, mas somente 20% se privam da combinação.
O Brasil nunca calculou o estrago do celular ao volante na prática - aliás, a ausência de estatísticas de sinistralidade no trânsito é, talvez, a maior dívida do poder público com o brasileiro nesse setor -, mas o mundo já. E os números assustam.
Na Espanha, a Diretoria Nacional de Tráfego (DGT) estima que 59% dos motoristas editam textos durante a direção veicular e as falhas de atenção ao conduzir são responsáveis por 35% dos sinistros fatais.
Celular ao volante: 28 multas por hora no trânsito brasileiro
Também de acordo com a Abramet, um estudo publicado na revista New England Journal of Medicine concluiu que as falhas de atenção ao conduzir pelo uso do telefone celular quadruplicam o risco de ocorrer uma colisão durante chamadas breves, taxa equivalente ao prejuízo causado pelo consumo de bebidas alcoólicas dentro do limite legalmente estabelecido.
A troca de mensagens eleva vertiginosamente os riscos de envolvimento em sinistros de trânsito quando se checa mensagens de texto (400%) e quando elas são digitadas (23%).
LEGISLAÇÃO MAIS RIGOROSA, MAS AINDA SEM RESULTADOS
O uso descontrolado do celular ao volante é um problema que tem crescido muito com os serviços de delivery e de transporte por aplicativo, como Uber e 99. Nem mesmo a alteração da legislação, em 2016, ampliando a punição para quem segura ou manuseia os aparelhos enquanto dirige - até então o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) citava apenas o uso, algo que poucas pessoas fazem atualmente -, tem conseguido inibir o hábito.
“O motorista brasileiro possui por natureza uma tendência ao comportamento infracional no trânsito, e, infelizmente, nossas leis ainda são muito brandas com crimes de trânsito. A recente flexibilização do CTB também foi um grande dificultador para a modificação desse perfil. É grande a parcela de motoristas que intencionalmente infringe as leis, e muito disso passa pela falsa sensação de impunidade”, reforça Alysson Coimbra.
- Impunidade ainda predomina nos casos de crimes de trânsito
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PERNAMBUCO
Os números de Pernambuco confirmam essa constatação. Dados do Detran-PE mostram que o uso e/ou manuseio do celular oscila entre a 4ª e a 6ª infrações mais cometidas no Estado pelo menos entre 2019 e 2022.
E que o crescimento ainda predomina. É, em média, de 30% ano após ano. Entre 2016 e parte do mês de maio de 2022, foram 458.713 registros de notificações. Com destaque para o salto a partir de 2017, o primeiro ano após a alteração do CTB: de 5.589 para 65.698 notificações.
AUTUAÇÕES EM PE
Pelo uso de celular (somando as três infrações diferentes: usar, segurar ou manusear)
2016 - 5.589 atuações
2017 - 65.698 atuações
2018 - 83.890 atuações
2019 - 106.670 atuações
2020 - 105.488 atuações
2021 - 68.876 atuações
2022 - 22.502 atuações (*)
(*) Até primeiros dias de maio
NO BRASIL
Em 2021 - 246.438 infrações de trânsito por uso de celular
Equivale a 28 pessoas multadas a cada hora usando o dispositivo enquanto dirigem
Mais de um terço (37%) das multas foi registrado no Estado de São Paulo
O uso do smartphone é a terceira causa de mortes no trânsito do País, ficando atrás apenas do uso de álcool e do excesso de velocidade
“Essa metáfora é verdadeira: o celular é o novo álcool no trânsito. Infelizmente. Com a diferença que, atualmente, as pessoas entendem que beber e dirigir é um risco. Há gente que desrespeita, sim, mas o discurso de que dirigia melhor após beber não existe mais. Com o uso do celular não. Ainda não chegamos a esse nível de consciência”, alerta Ivson Correia, gerente da Escola Pública de Trânsito de Pernambuco.
O educador aproveita para ensinar: “Usar o bluetooth ou o viva voz não diminui o risco de provocar um sinistro. Embora minimizem a distração, ainda é um risco porque desvia a atenção do condutor. Não é permitido usar o celular mesmo com o suporte. Você pode fazer uso dos aplicativos de localização, por exemplo, mas sem tocar no aparelho. Não pode tirar as mãos do volante. Para fazê-lo, é preciso parar o veículo numa área permitida. Direção e celular são atenções incompatíveis”, ensina.
“Dirigir exige concentração porque são muitos estímulos exteriores: pedestres, outros veículos, ciclistas, sinalização… E tudo isso com a pessoa sobre uma máquina de 1,5 tonelada. É preciso toda atenção para ela. É a mesma lógica de estar com uma metralhadora nas mãos. Se você for usá-la, vai precisar destinar toda a atenção para ela”, alerta.
VEJA O QUE DIZ O CTB SOBRE O USO DO CELULAR AO DIRIGIR:
É proibido dirigir o veículo:
Artigo 252 (Capítulo XV - Das Infrações)
VI - utilizando-se de fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora ou de telefone celular;
Infração - média (4 pontos na CNH)
Penalidade - multa (R$ 130,16).
Alteração em 2016 pela Lei nº 13.281
Parágrafo único: A hipótese prevista no inciso V caracterizar-se-à como infração gravíssima no caso de o condutor estar segurando ou manuseando telefone celular.
Infração - gravíssima (7 pontos na CNH)
Penalidade - multa (R$ 293,47).