Tecnologia e Inovação, com Guilherme Ravache

Tecnologia e Inovação

Por Guilherme Ravache
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viagem

Coelho barrado em voo é sintoma do caos aéreo e descaso com consumidor

Falta de regulamentação, agências fiscalizadoras ao lado dos fiscalizados e governos protecionistas que voam como VIPs ajudam a explicar o caos que toma conta das companhias aéreas

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Guilherme Ravache

Publicado em 20/11/2021 às 8:12
Confusão generalizada aconteceu após funcionários barrarem embarque com o animal - REPRODUÇÃO

Houve quem achasse graça no vídeo da briga entre um passageiro e funcionários da KLM no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, São Paulo. Teve ainda quem comemorasse o fato do passageiro não poder embarcar em um voo internacional por ser “rico”, já que queria levar um coelho para o exterior.

Infelizmente, a cena está longe de ser cômica e diz muito sobre as decisões regulatórias (ou falta delas) no setor aéreo nos últimos anos.

Primeiramente, o erro foi da companhia aérea. O casal tinha uma autorização judicial prévia para embarcar com o animal. Depois, a própria KLM havia liberado a entrada do coelho na cabine. “Devido a um equívoco interno da companhia, o transporte excepcional do animal na cabine da aeronave, com base em uma decisão judicial, não foi comunicado à tripulação do voo com antecedência”, afirmou a KLM.

Segundo, viajantes estão sob altas condições de estresse. Testes de Covid-19, a incerteza de conseguir embarcar ou não, o alto investimento na compra de uma passagem internacional. Nada justifica qualquer tipo de violência. Mas o contexto é importante.

Estresse e despreparo

Imagine você se preparar com antecedência, conseguir uma ordem judicial, ter a autorização da companhia e ser barrado no momento do embarque. Isso no mesmo período que o caso de animais morrendo no porão dos aviões cresce. Ok, era a KLM e não a Latam, que parece ter a liderança absoluta no descaso com transporte de animais. Mas você levaria seu pet no porão de uma aeronave tendo em mãos uma autorização e o direito de levá-lo na cabine? Como você teria reagido?

Vale destacar que o treinamento das equipes é fundamental e faz toda a diferença. Mas observe o vídeo e a postura dos funcionários. Fica claro que temos diversos representantes da KLM agredindo o passageiro. Qual seria o procedimento correto básico? Chamar a segurança. Novamente, uma sucessão de erros dos funcionários da KLM.

Mas para as aéreas, tratar o consumidor como lixo ou mesmo um idiota se tornou a resposta padrão. Chamadas telefônicas não atendidas, milhas cada vez mais difíceis de se converter em passagens, sites constantemente fora do ar, voos atrasados ou cancelados sem compensação.

É a pandemia, muitas aéreas se justificam. Mas será? Voos cheios e preços de passagens exorbitantes são a norma. O objetivo parece ser se aproveitar da situação para ganhar o máximo possível no menor tempo possível. E isso inclui cortar custos de treinamento e equipes de solo.

Imagino que os funcionários da KLM que agrediram o passageiro não sejam pessoas más, mas visivelmente não tinham capacidade de lidar com a situação. A sucessão de erros mostra que o problema vai além do coelho barrado. E veja, são sucessões de erros que causam acidentes nessa indústria.

Problema é mundial

O problema não se limita ao Brasil, vale dizer. Nos Estados Unidos o caos também imperava nos aeroportos e cresceu no pós-pandemia. Mas no Brasil, assim como nos Estados Unidos, a situação parece ser pior.

Em comum, os dois países optaram por uma postura mais “conivente” com o setor aéreo, reduzindo o nível de regulação e exigências. Nos Estados Unidos, essa “desregulamentação” do setor começou antes, mas a cada dia fica mais evidente que o processo foi desastroso.

A diminuição de regulação permitiu à Boeing cortar caminho na aprovação de suas aeronaves 737 MAX pelos órgãos de fiscalização. O avião tinha um problema de projeto que confundia os pilotos, mesmo assim a Boeing optou por não revelar o problema para não diminuir a produção e diminuir seus lucros. As agências reguladoras, que basicamente batiam carimbo no que a Boeing pedisse, aprovou o novo avião do jeito que estava. O resultado: as tragédias de 2018 e 2019, com a morte de 346 pessoas.

Agora, o cenário é outro e os órgãos reguladores voltaram suas atenções para a Boeing.
O 787 Dreamliner teve sua produção dramaticamente reduzida após se detectarem uma série de problemas na aeronave, incluindo falhas no nariz que poderiam levar à despressurização e problemas nas portas. Com menos escrutínio dos órgãos reguladores, o Dreamlines estaria neste momento nas fábricas ou nos céus? Essa é uma resposta difícil.

Menos regulação, mais confusão

Nos aeroportos americanos e voos de suas companhias a situação também é desanimadora. Aéreas cancelam milhares de voos, brigas são constantes e o consumidor também é tratado como lixo. Novamente, agências reguladoras fracas são o ponto em comum.

No Brasil, nos últimos anos, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), responsável por regular o setor, parece ter se tornado uma extensão das aéreas. Basta lembrar que a agência defendeu a cobrança para despachar bagagens com a promessa de que o valor das passagens seria reduzido. Mesmo com o valor dos bilhetes subindo, tempos depois, a Anac atuou para que Bolsonaro vetasse a volta da gratuidade de bagagens despachadas.

Fica cada vez mais claro que o transporte é um serviço essencial. E como tal, necessita de agências fortes e presentes para impor às companhias que sigam as regras. Pode até parecer que o consumidor tem muitas opções, afinal temos ao menos três grandes aéreas nacionais (se a Latam de fato é uma empresa brasileira é tema de debate). Mas essa crença de competitividade é uma ilusão. Uma eventual compra da Latam pela Azul deixará esse cenário ainda pior.

Um olhar mais cuidadoso mostra que as aéreas basicamente seguem a mesma política de preços e servem o consumidor como bem entendem, já que existe uma concentração nas rotas e poucas alternativas verdadeiras. O fato das aéreas viverem com o pires na mão, sempre afirmando que vão quebrar se o governo não fizer esta ou aquela concessão, é um fator complicador. Mas tem solução.

As empresas ineficientes deveriam quebrar. Varig e Vasp são exemplos de como tentativas de salvamento apenas prolongam a crise e prejudicam os concorrentes que têm alguma chance de seguirem vivos. Voos são cada vez mais um commodity, pouco importa a marca que atende a rota. Se uma quebra, outra entra. Mesmo os grandes jatos comerciais são em quase sua totalidade alugados pelas aéreas. Melhor uma morte organizada que uma falência caótica.

Protecionismo de aéreas locais

O argumento do Governo é que precisamos de empresas nacionais fortes para atender a destinos menos interessantes no interior. Isto é questionável, tente encontrar um voo para cidades menores e verá como são raros. O presidente Bolsonaro aprovou 100% de participação de capital estrangeiro nas áreas brasileiras, o que era do interesse das aéreas, mas não permitiu a entrada de concorrentes internacionais.

Se a Anac e o Governo são tão liberais com as aéreas brasileiras, inclusive afirmando que o pagamento por bagagem é uma prática de mercados desenvolvidos, por que não adota também uma postura liberal e permite a entrada de qualquer aérea internacional para competir também em rotas nacionais? Nem mesmo nossa política de “céus abertos” é tão aberta assim.

Segundo o Senado Notícias, “no caso do controle das aéreas pelo capital internacional, ficou de fora da MP a proposta de condicionar esse controle à operação, por um mínimo de dois anos, de 5% dos voos em rotas regionais. Os deputados também rejeitaram emenda que previa a operação de voos internacionais por tripulantes brasileiros, ressalvada a possibilidade de no máximo 1/3 de comissários estrangeiros”.

Ou seja, nossa política de céus abertos não é lá tão aberta assim. E nossos ilustres políticos, que não raro voam em aviões da FAB, mas são tratados como clientes VIP nas aéreas, tomaram medidas bastante camaradas com as empresas brasileiras. Fico imaginando um senador dizendo a uma empresa europeia, onde políticos vão ao trabalho de bicicleta, que ele é VIP porque tem até cota de passagens paga pelos eleitores.

Não é apenas sobre um coelho. É sobre o modelo de regulação e os incentivos de todo o setor aéreo. Hoje você pode achar graça do vídeo, mas não irá rir quando o atendente de uma aérea te tratar da mesma forma. Também não tem graça pagar mais caro por sua passagem e bagagem. Precisamos de regras claras e de uma agência forte e atuante para fiscalizar o setor aéreo.

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