Heróis salvaram as bilheterias, mas Ancine ainda pede socorro no Brasil: o que marcou o cinema em 2021
Consolidação do retorno das salas de cinema, lançamentos exclusivos e simultâneos com streaming, morte de Paulo Gustavo e caso de Alec Baldwin também marcaram a sétima arte
A experiência completa do consumo do cinema voltou a ser possível em 2021: salas mais cheias (ainda com necessárias restrições), aguardadas sessões de pré-estreias e o furor coletivo dos espectadores em cenas alucinantes. A indústria estadunidense emplacou novamente os seus sucessos globais de bilheteria, embora o lançamento pelo streaming não tenha sido deixado de lado. Já o cinema brasileiro celebrou o sucesso de Marighella, de Wagner Moura — mas continua se esforçando para resistir em meio ao desmonte dos órgãos de fomento e regulação.
Retorno e recorde
Após a segunda onda da covid-19 no Brasil, muitos equipamentos culturais, incluindo os cinemas, voltaram a reabrir no final do segundo semestre. Os principais sucessos só vieram ter seus lançamentos no último trimestre: Venom — Tempo de Carnificina, de Andy Serkis, pode ser considerado um marco dessa retomada ao quebrar recordes de estreia na pandemia nos EUA e no Brasil em outubro.
A marca só foi superada por outro filme de heróis, também do universo Marvel (dessa vez ligado à Disney, já que Venom é da Sony Pictures): Eternos, de Chloé Zhao. Tendo trazido a primeira cineasta oriental a dirigir um filme do Universo Marvel e ser marcado pela diversidade, o longa recebeu várias críticas negativas, criando um debate sobre o incômodo que a produção causou ao levantar essa bandeira.
Também tivemos o início de uma nova saga: Duna, de Denis Villeneuve, baseado no clássico da literatura de ficção científica de Frank Herbert. O filme recebeu elogios pelos seus efeitos especiais, pela grandiosidade e o elenco, com as estrelas Timothée Chalamet e Zendaya. Apesar da queda de bilheteria na segunda semana, tem continuação garantida para 2023.
Nessa retomada, o grande sucesso foi, sem dúvidas, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, que já arrecadou US$ 1 bilhão em bilheteria, sendo o primeiro a atingir essa marca na pandemia. Com ótimas críticas, também causou um certo "frisson" típico da cultura pop em seu lançamento, algo que ainda não havia sido visto desde março de 2020. Falando em cultura pop, Matrix: Resurrections também garantiu nostalgia, metáforas e autossátira. Casa Gucci, de Ridley Scott com Lady Gaga, dividiu opiniões, mas também teve sucesso.
Streaming
Se as salas voltaram a lotar, a pandemia também deixou suas marcas na distribuição de conteúdos cinematográficos inéditos. O ano foi marcado por lançamentos exclusivos ou simultâneos com o streaming. No Brasil, a produção que se destacou neste sentido foi o combo A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais, que recontam o caso Suzane von Richthofen, lançado pela Amazon Prime Video.
No âmbito global, a Amazon ainda lançou Cinderela, com Camila Cabello, e Um Príncipe em Nova York 2. A Disney+ disponibilizou diretamente na plataforma Cruella, Raya e o Último Dragão e Viúva Negra. A prática, mesmo com a retomada das salas, evidencia uma notável mudança nos padrões de consumo. Também existem os filmes das marcas que sempre apostaram no 100% virtual: a Netflix, por exemplo, lançou Não Olhe para Cima, de Adam McKay, no Natal.
Paulo Gustavo
Por falar em sucesso de bilheteria, o Brasil perdeu uma de suas figuras mais impactantes na história recente do cinema. O ator Paulo Gustavo faleceu vítima da covid-19 em maio, deixando o País de luto. Os filmes da trilogia Minha Mãe É Uma Peça, baseados em uma peça de teatro, foram os mais vistos dos anos em que foram lançados — sendo o terceiro deles, de 2019, o primeiro mais visto do cinema brasileiro.
Com seu talento, Paulo Gustavo conseguiu se tornar o mainstream brasileiro. Para além do lado comercial, trouxe uma importante representatividade para as telas. Era um homem homossexual que conquistou as famílias brasileiras. Assumiu o relacionamento — e casamento — com o médico Thales Bretas, com quem criou dois filhos nascidos de barrigas de aluguel. A indústria do cinema, a classe artística e o público sentem sua falta.
Crise na Ancine
Além das dificuldades causadas pela pandemia, a indústria cinematográfica nacional atravessa uma grave crise pelo apagão da Agência Nacional de Cinema (Ancine). A classe artística vem aguardando por mais informações sobre os editais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal ferramenta de fomento da autarquia. Em julho, um incêndio num galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, tornou-se a expressão física do abandono.
Em dezembro, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que o presidente Jair Bolsonaro e o secretário especial da Cultura, Mário Frias, dessem explicações sobre a atual crise pela qual passa a Ancine. A entidade dos advogados afirmou que preceitos fundamentais do órgão estariam sendo descumpridos por omissões da gestão.
Entre os argumentos, a OAB cita que o governo estaria empreendendo atos análogos à censura. O filme "Marighella", de Wagner Moura, é o principal exemplo das dificuldades que a agência vem impondo ao lançamento de determinados filmes. Previsto para 2019, o longa foi adiado três vezes até chegar às telonas em 4 de novembro, consagrando-se como o maior lançamento brasileiro na pandemia, levando 318,2 mil pessoas aos cinemas em 10 semanas em cartaz.
Apesar do êxito de "Marighella", a Ancine pareceu não cessar o modus operandi. A equipe de "Medida Provisória", de Lázaro Ramos, acusou a agência de atrasar propositalmente o lançamento do longa, que aborda um Brasil sob um governo que determina que todos os negros sejam despachados para a África.
Cinema de Pernambuco
A produção pernambucana voltou a brilhar em festivais nacionais com Carro Rei, de Renata Pinheiro, o grande vencedor do 49º Festival de Cinema de Gramado, com quatro premiações: melhor filme, melhor trilha musical (DJ Dolores), melhor direção de arte (Karen Araújo) e melhor desenho de som (Guile Martins). O longa é protagonizado por Matheus Nachtergaele, que vive um homem que se comunica com carros. No ano passado, King Kong en Asunción, do também pernambucano Camilo Cavalcante, também foi o grande vencedor dessa premiação.
Gravado em Olinda, Rio Doce, estreia de Fellipe Fernandes em longa-metragem, saiu como grande vencedor do Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba, em março, onde levou prêmios das mostras Competitiva, Outros Olhares e Novos Olhares, além do Prêmio Olhar, o principal do evento. Em dezembro, foi agraciado com o Première Brasil Novos Rumos do Festival do Rio.
O longa é protagonizado pelo rapper Okado do Canal, tratando da jornada emocional de um homem negro periférico em crise com o modelo de masculinidade. O diretor já foi assistente de Kléber Mendonça Filho (em Aquarius, e Bacurau, codirigido por Juliano Dorneles), Cláudio Assis (Piedade) e Tavinho Teixeira (Sol Alegria).
Caso Alec Baldwin
Em Hollywood, em outubro, uma tragédia jogou luzes na importância da segurança nos estúdios das produções cinematográfica. Mesmo na maior indústria do mundo. Alec Baldwin, ator de 68 anos, efetuou um tiro acidental e matou a diretora de fotografia Halyna Hutchins, 42, durante a filmagem do faroeste “Rust”, em Santa Fé, Estados Unidos. Em dezembro, o ator deu sua primeira entrevista e afirmou não ter puxado o gatilho.
“Eu jamais apontaria uma arma para alguém e depois puxaria o gatilho. Alguém colocou munição de verdade na arma, aquela munição não era nem para estar na propriedade”, defendeu-se. O caso segue em investigação minuciosa e levantou uma discussão que, se espera, possa gerar mudanças.