O que mudou na paisagem do Recife durante a pandemia e você não viu

Com a retomada de parte das atividades, mudanças drásticas na cidades são possíveis de perceber. Veja imagens
Maria Lígia Barros
Publicado em 14/07/2020 às 14:06
Algumas mudanças realizadas durante isolamento podem ser notadas na cidade. Foto: YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM


Depois de quatro meses desde a chegada da pandemia do novo coronavírus a Pernambuco, os recifenses que começam a sair de casa por conta da retomada das atividades econômicas podem ter tomado um susto. É que alguns equipamentos tradicionais da paisagem da cidade passaram por mudanças. Como a circulação de pessoas nas ruas estava bastante restrita, muita gente não viu intervenções importantes que aconteceram. A reportagem do JC circulou por vários locais da cidade com mudanças grandes para te ajudar a exercitar o olhar. E também esteve em equipamentos que seguem com os mesmos problemas do período pré-pandemia.

O primeiro "susto" é para quem circula no Centro. Um dos principais corredores viários no coração da cidade, a Avenida Conde da Boa Vista está com outra cara após 15 meses em obras. Quem voltou a usar a rota após o período de quarentena afastado se surpreendeu ao reencontrá-la transformada.

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Para o arquiteto William Morais, entre as transformações que a pandemia impôs nas pessoas, a relação com a cidade também foi afetada. O urbanista acredita que o momento favoreceu a observação do entorno. “Ainda se precisa fazer muito, mas esse tempo que o pessoal teve pra olhar para sua cidade fez com que as pessoas se conscientizassem e indagassem mais”, opinou.

Foi assim com técnica de enfermagem Marinete de Almeida, 39, que passou pela Boa Vista pela primeira vez em quase um ano nessa segunda-feira (13). O cenário diferente inclui novas paradas de ônibus, duas estações de BRT, alargamento das calçadas, elevação do piso, pinturas de faixas de pedestre e sinalizações verticais (placas).

“Depois de tanto tempo sem sair, estou saindo, porém com cautela. É uma sensação de renovo”, falou. “Quando você chega aqui, vivencia e vê, para para pensar o antes e o pós-quarentena”, disse. O resultado foi aprovado. "Acho que ficou bom, porque deu mais espaço para o transporte, as calçadas estão mais organizadas”, opinou.

A assistente administrativa Daniele Toscano, 29, trabalha em uma clínica de odontologia localizada na avenida e acompanhou de perto o avanço das modificações. Semáforo e faixa de pedestre foram colocados quase em frente ao consultório, facilitando travessia de quem vem do outro lado da pista.

"Ficou menos risco para a sociedade. Na hora de atravessar, o sinal ficava bem lá na frente, e acaba que atravessávamos bem no meio dos ônibus. Essa divisória, com plantas, ficou bem legal. Antes não tinha isso. Esteticamente ficou mais bonito", descreveu.

Mas a reforma não escapou das críticas. A aposentada Maria José Chagas questionou as sucessivas obras pelas quais a avenida passa. “Só vive em construção. Faz de um jeito, não fica bom como eles acham, desmancha, faz outro. Vem outra gestão, desmancha, faz outra, assim vai…”

Segundo a diretora presidente da CTTU, Taciana Ferreira, ainda faltam ser concluídas nesta fase final a implantação da fiscalização eletrônica para restrição de veículos em algumas áreas da via e adequações na parte de canteiros. “Está bem adiantado”, falou. Ela não cita data para término das alterações, que começaram em março do ano passado, mas diz que está dentro do cronograma de dezoito meses. O investimento aproximado total é de R$ 15,7 milhões.

Como parte da Nova Conde da Boa Vista, a construção da estação de BRT Soledade foi entregue no último dia 4. A abertura agradou o microempresário Wesly de Araujo, 25, após a gestão ter desativado seis estações provisórias para a implantação das novas. “Estava uma dificuldade muito grande, porque a gente que queria vir para esse lado de cá tinha que ir até a estação do Derby para se direcionar até aqui. Pelo menos com a inauguração dessa parada, dá para ter acesso aos três principais pontos da Conde da Boa Vista", justificou.

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Ele também não deixou de questionar o custo da requalificação. "É a primeira vez que estou usando esta unidade. Porém, eu já tinha usado a próxima a do Atacado dos Presentes (Estação Hospício). O valor ultrapassava R$ 5 milhões da estação. Se foi investido tanto em mobilidade nos últimos tempos, mudança concreta não vemos”, criticou.

Derby

As pessoas que exercitarem o olhar vão notar, também, o trânsito diferente no Derby, na área central do Recife. Taciana Ferreira explicou que a menor circulação nas ruas durante a pandemia tornou possível a aceleração do projeto, inicialmente previsto apenas para a metade do segundo semestre. "A previsão era que ela fosse implantada em meados de setembro e a gente conseguiu antes”, revelou.

Entre as novidades, a Avenida Governador Agamenon Magalhães, principal via que liga a Zona Sul do Recife à vizinha Olinda, recebeu uma Faixa Azul de 4 quilômetros de extensão, beneficiando 250 mil passageiros das 64 linhas de ônibus que trafegam no local.

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A pista central da Praça do Derby também passou a ser exclusiva para ônibus no sentido centro. A mudança ensejou outras alterações na circulação de veículos no entorno: os carros que vêm da Rua Benfica, na Madalena, agora têm que desviar pelas ruas Jener de Souza ou Henrique Dias.

Já os condutores que vêm pela Agamenon Magalhães, sentido Boa Viagem, não podem acessar a Rua Benfica pela pista central; precisam virar antecipadamente à direita na Pista Norte da praça, na esquina o banco Bradesco.

A adaptação foi um pouco difícil para o motorista Edson Oliveira, 36. "Achei estranho. Mas melhorou o trânsito", comentou.

Para os passageiros de ônibus, um alívio no trânsito. O professor Pedro Lucas da Silva ,20, relatou uma velocidade maior no embarque. “De onde venho para cá, costuma demorar de 1h a 1h30. Hoje demorou uns 40 minutos. Foi mais rápido”, comemorou.

De acordo com a representante da CTTU, esse foi o objetivo da intervenção. “As pesquisas indicam que a maior parte das pessoas usam o transporte público como transporte diário.
Na Agamenon Magalhães, a gente estima redução de tempo de viagem em 30%. Nesse tempo de pandemia, é importante garantir que as pessoas passem menos tempo no ônibus”, falou.

 

Próximo da região, na Avenida Agamenon Magalhães, na altura da rua Joaquim Nabuco, os pedestres ganharam uma área de respiro na travessia em frente ao Hospital da Restauração. O percurso foi reduzido em 70%, de 85 metros para 25 metros.

O cruzamento costumava ser perigoso para quem vinha a pé. “Antigamente era muito largo para atravessar e a gente tinha que passar correndo”, lembrou o técnico Alexandre Gustavo, 39, que transita pelo local todos os dias.

“Agora está melhor. A gente tinha que correr direto. Agora tem onde esperar o trânsito fechar”, completou Neuza Lima.

Os motoristas de carros particulares, por outro lado, não ficaram tão satisfeitos. O corretor de imóveis Diógenes Barbosa, 37, disse que a intervenção foi boa para o pedestre, mas reclamou do efeito que terá para os automóveis. "É que a gente está em período de pandemia, então não está vendo esse volume tanto de carro. Mas, quando voltar à normalidade, isso vai virar um horror", especulou.

Água Fria

Outras iniciativas em benefício da mobilidade ativa foram em Água Fria, na Zona Norte do Recife. Em volta do mercado municipal do bairro, onde a circulação de pessoas é grande e as calçadas são estreitas, foram feitas pinturas no chão para aumentar a área dos pedestres. A técnica é chamada de urbanismo tático, solução temporária e de baixo custo implantada com tinta.

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“Nós começamos a utilizar o urbanismo tático já em outros bairros. Iniciamos na Ilha do Leite, quando tivemos a oportunidade de fazer uma simples pintura e conseguiu melhorar e muito a segurança viária para o pedestre e ciclista. Fizemos em Afogados, nos Coelhos, em Santo Amaro”, enumerou Taciana.

“São locais que verificamos que há necessidade de fazer melhorias para pedestre e ciclista, e com tinta a gente pode fazer de forma mais rápida com sinalização e consolidando aquela geometria de recuo de espaços. É uma forma de antecipar para população, com a tinta, o benefício da segurança, ao mesmo tempo em que a gente avalia a eficiência do projeto”, definiu.

A auxiliar de vendas Sandra Maya, 59, moradora do bairro, considerou a mudança bem vinda. De grupo de risco da covid-19, ela não saía de casa havia três meses e testou a nova calçada nessa segunda. “Isso já deveria ter sido feito. Ficou mais seguro, não só para mim, mas para as pessoas mais idosas”, comentou.

A visão contrasta com a de quem tem carro. O fretista de aplicativo Ronaldo da Costa, 53, circula em frente ao mercado diariamente. "Na minha opinião, ficou bonito, mas atrapalha o trânsito. A população de Água Fria está crescendo e tem pouco lugar para estacionamento. Fica complicado", reclamou.

Uma ciclofaixa de 2,2 quilômetros de extensão ainda foi implementada entre a Estrada Velha de Água Fria e a Avenida Beberibe, conectando os dois bairros.

Pontes

As pontes da Torre e do Derby passaram por reformas estruturais e foram entregues à população no último mês. As restaurações tiveram início em março de 2019 e custaram R$ 11,11 milhões ao município.

O valor contemplou a recuperação dos tubulões, das travessas, transversinas e do tabuleiro da ponte, a substituição dos apoios e a pintura de proteção em todo o serviço realizado, de acordo com a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb).

A ponte Motocolombó, em Afogados, também está passando por reforma, e deverá ser concluída em agosto deste ano.

O que ainda pode avançar

Ainda que alguns cenários tenham se transformados, persistem outros mesmos desafios que a cidade encara há anos. Na avaliação dos especialistas, o avanço poderia ter sido maior - e o caminho se estende pela frente caso o Recife deseje se transformar.

Francisco Cunha elogiou as estratégias de urbanismo tático, mas destacou como poderiam ter sido mais utilizadas nos últimos meses. “Houve um avanço menor do que possível. Acho que é uma ferramenta extraordinária muito menos utilizada do que deveria. Eu costumo dizer que tinta e boa vontade salvam vidas”, defendeu o arquiteto, que se considera militante da mobilidade a pé.

“Temos um potencial enorme para trabalhar isso, e a gente fica com a mentalidade tradicional achando que tem que fazer as coisas com pedra, cal, carvalho”, sustentou.

“O vírus não desapareceu, temos a oportunidade de fazer intervenções urbanas como as que estão sendo empregadas na Europa, na saída do isolamento, com a ampliação de calçadas. Porque até sair a vacina, vamos precisar de passeios largos para manter a distância mínima. Poderia ter avançado e pode ainda. A janela está aberta”, concluiu.

O especialista comentou ainda sobre a Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife; um dos cartões postais que entrou em evidência após ser eleito como o terceiro logradouro mais bonito do mundo pela revista estadunidense Architectural Digest. No ranking, a via aparece atrás apenas das ruas de Setenil de las Bodegas, cidade espanhola, e do Brooklyn, em Nova Iorque, Estados Unidos. “As fotografias mostram a rua sem carro, mas nela é permitido estacionar. Por que não aproveitar esse tempo e interromper a circulação de carro?”, sugeriu.

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O jornalista Daniel Schvartz, 26, passava pela rua, nessa terça, e concordou com a visão do arquiteto. "Considerando o que foi feito na Avenida Rio Branco, eu acho que seria uma boa alternativa. Até pela questão da feirinha nos fim de semana, acho que se torna mais atrativo, fica mais seguro. Mas tem que ver que outros incentivos, porque não adianta deixar só para pedestres e não ter atração”, ponderou.

Na análise de Francisco Cunha, o urbanismo tático mostrou-se eficaz também no Jardim do Baobá, na Avenida Rui Barbosa, bairro das Graças, Zona Norte.

“O jardim era o final de um muro que o ficava a 50 cm do tronco do Baobá. Antes de fazer definitivamente, fizeram uma série de experiencia, chamando o público. Deram certo e por isso implantou-se. Botaram balanço, mesa de piquenique e um deck dentro do rio, e é um sucesso absoluto”, frisou.

O case é lembrado também pelo arquiteto urbanista Renato Montezuma, diretor do Inciti, rede de pesquisadores da UFPE responsáveis pela elaboração do projeto Parque Capibaribe, junto com a Prefeitura do Recife. O Baobá é uma das iniciativas que constituem o projeto.

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Renato defendeu que tais projetos integrativos podem alterar o panorama de disparidade que domina a capital. “O problema é muito mais sério. Eu fico achando que a pandemia deu um corte no Globo e expôs o drama da desigualdade. O drama da desigualdade está em tudo e é insustentável”, avaliou.

Em alguns dos quadros mais emblemáticos de desigualdade, com o contraste dos espigões e das habitações de baixa renda, pouco mudou para além das máscaras nos rostos dos transeuntes.

“Todos os bairros do Recife são desiguais”, pontuou. “A questão é que a cidade é um sistema e precisa ser compreendida como tal. Na hora que você afeta um campo, também afeta outro. A questão ambiental, no fundo está relacionada à questão social e à econômica. O Jardim do Baobá é um sistema integrado”, justificou. “Quando você qualifica o espaço, ele automaticamente se valoriza e promove relações de diversas naturezas.”

O Parque Capibaribe foi iniciado em 2013 como um projeto de requalificação das margens do rio que corta a cidade. A iniciativa mais recente é o Parque das Graças, que está para ser construído no trecho entre as pontes da Torre e da Capunga. Quem passar no início da Rua Amélia, na descida da Torre, vai reparar os tapumes da obra à direita. As reformas vêm se arrastando por quase três anos e, depois de suspensas pela segunda vez, deverão ser retomadas nos próximos meses.

A primeira licitação para o parque saiu em 2017. De acordo com o secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, Guila Calheiros, o consórcio de empresas vencedor do certame desistiu de executar a obra.

No final de 2018, um novo edital foi publicado, e a empresa ganhadora Cinzel deu início às intervenções na área em fevereiro de 2019. No entanto, as reformas não avançaram. “A obra estava andando muito devagar, não estava dentro do cronograma. Foi feito muito pouco, e isso fez com que a Urb rescindisse o contrato”, falou o gestor.

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Em 4 de julho deste ano, uma terceira licitação foi lançada para dar continuidade à construção. A pasta informou que o projeto prevê 900 metros de Parque Linear e mais 750 m de Ruas de Infiltração (vias com tratamento de parque). O local terá vias de baixa velocidade compartilhadas entre pedestres, ciclistas e veículos motorizados, elevadas a nível da calçada, áreas de convivência e ampliação da área arborizada, com 200 novas árvores e 55 supressões.

Até o novo edital ser aberto, só foram concluídas a vala de drenagem entre as Rua das Pernambucanas e a Ponte da Capunga e a pavimentação entre a Ponte da Torre e a Rua Manoel de Almeida. A previsão inicial é que o parque seja entregue em um ano, estimou o secretário.

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