No dia a dia corrido da capital, uma dúzia de sapateiros e engraxates sentados na Avenida Guararapes passa quase despercebida por comerciantes, trabalhadores e estudantes que frequentam o local. Enquanto o trânsito frenético acontece, eles seguem ali, dia e noite, de domingo a domingo, à espera da clientela fiel; mas sorte de quem tem a oportunidade de, ao conversar com eles, parar o tempo. Há décadas no mesmo ponto, transmitem como ninguém as mudanças, evoluções - por vezes, involuções - e memórias do Bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, sendo resquícios, ainda que em menor número que no século passado, de uma cidade que não existe mais.
Faz 55 anos que Sebastião Francisco dos Santos chegou para trabalhar na calçada do Edifício Edvaldo dos Santos, onde hoje funciona uma faculdade particular, após ter saído da sua terra natal, Alagoas. À época, ao seu redor, via o Cinema Trianon estampar as novidades da sétima arte. Os anúncios luminosos no topo dos prédios refletir nas águas do Rio Capibaribe, fazendo um show à parte. Os ônibus elétricos irem de lá para cá. Advogados, médicos e empresários se deslocarem até seus luxuosos escritórios. Os boêmios serem atraídos pelo Bar Savoy, reduto do poeta Carlos Pena Filho, que ficava na esquina onde trabalha.
LEIA MAIS SOBRE O CENTRO
- Infraestrutura precária e abandono fazem a Rua Imperial, no Centro do Recife, contradizer o próprio nome
- Enfim, política habitacional para os mais pobres é sancionada no Recife. Entenda o que isso significa
- Novo gabinete da Prefeitura do Recife é criado para revitalizar o Centro, mas acende alerta sobre como atuará
- A resistência do comércio e o movimento de retorno da arte e da moradia ao Centro do Recife
Ao chegar ao Recife, ouviu que engraxar dava dinheiro, e contou com ajuda de quem já trabalhava naquele ponto para aprender o serviço. Eram quase cem engraxates que nem mesmo precisavam disputar os clientes, tamanha demanda nos anos 60. “Quando eu engraxava dois, o rapaz que me ensinava ficava com o dinheiro de um”, contou. Com o passar dos anos, ficou craque no ofício: além de polir, agora costura e faz o conserto completo de um sapato, por preços que variam entre R$ 5 e R$ 15, a depender do serviço. “Deixo ele novinho”. Foi assim que conseguiu sustentar seus quatro filhos e comprar uma casa na Mustardinha, Zona Oeste do Recife.
Mas os tempos passaram e arrastaram também a moda, o comportamento e o reconhecimento de sua importância para a cidade. No último dia 9 de janeiro, cinco bancas de engraxates foram retiradas pela Prefeitura do Recife da Avenida Guararapes sob o argumento de que seriam renovadas. A troca, que já era esperada há mais de 10 anos, chegou sem aviso prévio, para, segundo a Secretaria Executiva de Controle Urbano (Secon), serem substituídos por novos "equipamentos, padronizados e específicos para a atividade".
A Secretaria Executiva de Controle Urbano (Secon) informa que, em comum acordo com os comerciantes, foi estabelecido que serão utilizados equipamentos provisórios em substituição aos que estavam em mau estado de conservação e foram retirados. A ação de ordenamento urbano que acontecerá no local leva em conta a disponibilização de novos equipamentos, padronizados e específicos para a atividade de sapateiro.Secretaria Executiva de Controle Urbano (Secon)
Na segunda-feira, Luiz Carlos da Silva, de 54 anos, que há mais de 30 conserta sapatos na Guararapes, não viu nem resquício do seu material de trabalho, e precisou ir até a sede do executivo municipal para tê-lo de volta. “Perdi pelo menos quatro dias de trabalho para consertar o que perdi. Prometeram que vão nos dar uma nova, o que é ótimo, só que deveriam ter tirado a nossa quando a nova já estivesse pronta ”, disse.
LEIA MAIS SOBRE CIDADES
- "No Holiday, eu vivia. Hoje não vivo mais". Proprietários de icônico edifício do Recife ainda à espera de respostas
- As lições de Medellin, cidade-modelo de transformação urbana, para o Recife, a capital da desigualdade social
- Conheça o "Recifeando", o aplicativo que permite moradores e turistas se aprofundarem na história do Bairro do Recife
- Dona Lindu, Jaqueira e outros: o que pode acontecer com os seis parques urbanos que estão na mira da concessão no Recife?
Luiz só falta ter um troço quando vê um advogado passando apressado com os sapatos sem brilho pela rua. É que o serviço subjugado por muitos é, para o sapateiro, mais que uma forma de ganhar dinheiro; é um prazer. “Mais vale a satisfação do cliente do que o que recebo. Claro que preciso disso para viver também, mas amo o que faço”. Só que com o passar do tempo, Luiz tem percebido que o costume de lustrar os sapatos têm sido esquecido. “Se antes eu fazia dez graxas para um conserto, hoje faço dez consertos para meia graxa. Hoje as pessoas só querem usar tênis”. Assim, para além das mudanças no Centro, as da moda fizeram aparecer menos clientes que antes.
Seu Sebastião que o diga. Há alguns anos, ele trabalhava até as mãos incharem. Era capaz de devolver a beleza de 20 a 30 sapatos por dia. Mas em uma tarde agitada de uma segunda-feira de janeiro de 2022, em uma avenida por onde passam centenas de milhares de pessoas por dia, só havia consertado dois. Da sua banca, já conheceu muitos pés famosos. “Já engraxei sapatos de Marco Maciel, Chico Sampaio, Augusto Lucena”. E também fala de antigos prefeitos, como Jarbas Vasconcelos e Joaquim Francisco (1948-2021), como amigos íntimos. “Sempre passavam por aqui. Os de hoje nem vejo mais".
Luiz assistiu ao bairro decair e a insegurança tomar conta. "Difícil é perguntar o que não tenho visto por aqui. É muito roubo, todo dia. Dizem que tem câmeras, mas nem sei para quê servem. O Centro está entregue às baratas. Tem ruas que não dá para transitar, porque não tem ninguém. À noite, os boêmios acabaram. Por isso o subúrbio está com mais movimento que aqui", citou, antes de parar o bate-papo, com educação e indicando sua prioridade, para entregar o sapato de uma cliente, que terminou no mesmo dia em que conseguiu pegar sua banca de volta.
Abaixando o tom de voz, Luiz repetiu algumas vezes com tristeza que o trabalho do engraxate e do sapateiro está em extinção, porque os filhos não querem mais carregar a herança dos pais. Assim como os sapatos, que antes duraram mais de quatro anos, mas agora resistem no máximo um, segundo ele, Luiz sente que perde a validade cada vez mais rápido. Mas ao final da conversa, corrigiu: "mas não acaba não. No subúrbio está cheio”, como quem pareceu ter entendido, por si só, que tradição não morre: se renova. Assim como os milhares de sapatos que já restaurou.