Ser poeta, para o escritor português Daniel Jonas, um dos principais nomes da literatura lusitana contemporânea, é ter uma espécie de “hérnia da alma”. Nos seus textos, ele alterna entre fazer uma poesia que reitera e recria caminhos anteriores e desconfiar de tudo que soa como parte de um repertório poético convencional. Não chega a ser um conflito entre reverência à tradição e iconoclastia: é uma tensão mais sutil, entre alguém que estuda e anota a melhor forma de atravessar um rio, mas que sabe que precisa chegar até a outra margem.
Inédito até então no Brasil, Daniel tem o seu primeiro livro lançado por aqui agora pela Todavia. Os Fantasmas Inquilinos traz uma seleção, feita por Mariano Marovatto, de versos de sete obras do autor, como uma boa e plural apresentação desse estilo meio mutante do poeta. Assim, o leitor é conduzido, de forma não cronológica, à trajetória do vencedor do Grande Prêmio da Literatura de 2018, em Portugal.
Nascido no Porto em 1973, Daniel construiu sua obra tanto na poesia como no teatro. A tradução também é elemento importante para entendê-lo: trabalhou com a obra de Shakespeare e Charles Dickens, e sua versão do poema Paraíso Perdido, de John Milton, acumulou elogios e foi lançada também no Brasil pela Editora 34. Costuma-se dizer também que Daniel é o “maior” poeta português da atualidade, brincadeira com os seus 1,91 metros – e também ironia com o próprio fetiche da crítica de encontrar e criar figuras absolutas.
Os Fantasmas Inquilinos começa com um dos livros recentes do poeta, Canícula (2017), termo que faz referência a um calor muito forte. Assim, os poemas parecem falar tanto do mormaço de uma cidade como do tédio quente que exige o recolhimento enquanto o torna insuportável. “A cidade range de calor/ como um cão”, anota. “Eu quero que a cidade sofra de não ser eu.”
Bisonte (2016) reafirma algo que se faz presente nos poemas selecionados nos primeiros livros de Daniel: uma despojamento modernista da escrita, uma aproximação (mas nunca uma mera cópia) da fluência poética de um Fernando Pessoa ou de um Carlos Drummond de Andrade. É também um livro do vazio, de um homem que diante de tudo se sente diante de nada. “A escuridão é todo o meu petróleo”, diz em Deslocação das Nuvens. Esse poema, dividido em duas partes, é um dos mais belos do volume: fala das salas de espera como a vida suspensa. As imagens são poderosas: a solidão da limpeza, sensação de estar “coado, desnatado, à solta pelo destino”, não “estar na coziness do antes/ nem no stress de depois”.
Daniel ainda fala que “toda vida longa é uma vida imperfeita”. É nesse livro que surge a expressão mais desiludida, desconfiada da poesia: “canto o cansaço do canto”. Passageiro Frequente, livro de 2013, traz mais poemas curtos que os dois outros livros. “As casas. Condenam-me a não serem minhas./ Bah! Condeno-as a não terem asas”, escreve o autor. Esse Ossétia, fala da renascença e do fotojornalismo, com “algo de horror” e “algo de Leonardo”. No livro seguinte, confessa: “o meu poema teve um esgotamento nervoso”.
Se é a desconfiança e a fluidez despojada do modernismo que unem esses primeiros livros, as três obras finais da coletânea são todas compostas como sonetos que não separam suas estrofes. Ainda que ironia e a dicção saborosa de Daniel estejam aqui, é como outro movimento, outra persona do autor. Como diz Mariano Marovatto, Daniel “ora confia, ora se enfastia do repertório que carrega consigo”. Aqui é a parte em que ele mais acredita, reinventando os passados literários.
O escritor pensou os livros de sonetos, lançados em períodos diferentes, como uma trilogia – já afirmou não ter interesse em criar mais no formato, como se terminasse sua incursão shakespeariana. Oblívio (2017) tem belos momentos. “Eu amo quem amei e me deixou;/ Não amo quem pousou – só quem voou”, diz o autor, numa ode ao desengano. As demais obras, Nó (2014) e Sonótono (2007), buscam a mesma estrutura. “A vida toda cabe num caixão”, termina um soneto.
Os Fantasmas Inquilinos é uma apresentação cuidadosa e fluente à produção de Daniel. No posfácio, Mariano lembra que trazer os sete livros é uma forma de mostrar como o poeta tem várias faces, criando personagens poéticos que não são ele, mas que não são falsos. Afinal, esse é um autor que pode começar um texto dizendo que “tudo é breve” para terminar com uma melancolia quase resignada: “eu bebo/ porque se não beber/ não conduzo/ este corpo a casa”.