“Não havia olhos inocentes”, diz o livro Caderno de Memórias Coloniais (Todavia). Sua autora é Isabela Figueiredo, uma “portuguesa vira-latas”, nascida em Moçambique e radicada em Portugal desde os 13 anos. Na narrativa de sua infância, ela faz um duplo retrato do racismo que viu na infância, sem utilizar disfarces ou eufemismos, mesmo quando fala do seu pai. Convidada pela Bienal do Livro de Pernambuco, ela participou de uma mesa no domingo (6) sobre os dez anos de publicação da obra. Nesta entrevista a Diogo Guedes, ela comenta sobre a reação negativa dos portugueses ao livro e o sobre relação com o pai e o passado.
JORNAL DO COMMERCIO – Caderno de Memórias Coloniais teve uma reação dura, pois muitos portugueses retornados não queriam admitir o racismo e a exploração das colônias. Desde o lançamento, mudou a forma como o romance é lido em Portugal? E em países como Moçambique e Angola?
ISABELA FIGUEIREDO – Sim, foi uma reação dura, no início, da parte de quem gosta de branquear a história de Portugal. Precisei ser muito firme na minha argumentação relativamente ao que tinha experienciado na época colonial. Ao que tinha visto, ouvido e sentido. Houve uma tentativa de descredibilização da minha memória, relacionada com a minha idade muito jovem, à altura, e também com o facto de a minha origem social ser operária. Mas isso foi sendo resolvido com a honestidade do relato, com a confirmação do meu testemunho por parte da Academia e com a excelente recepção da crítica. Essas vozes calaram-se. O Caderno impôs-se em Portugal como um testemunho incontornável do que foi o colonialismo português na sua fase moribunda.
Não penso que seja um livro muito estimado nas ex-colônias, porque também não poupa os africanos relativamente às atrocidades que se seguiram, no período da descolonização. As injustiças por eles cometidas também lá estão. É um livro impiedoso para todos, na sua narrativa.
JC – Em Portugal, existe a figura dos retornados, que nasceram em outros países, mas se consideram portugueses. Como você lida com a sua própria origem? Considera-se uma moçambicana, uma portuguesa ou um pouco dos dois?
ISABELA – Na minha vida há essa enorme fenda identitária, que eu vou remendando laboriosamente, mas que não é nada incomum. Outros povos que se viram afastados do lugar onde nasceram, por motivos políticos, conhecem este sentimento. Eu nasci em Moçambique sob administração portuguesa. Tive uma educação católica, baseada nos princípios tradicionais da cultura portuguesa, que se foi desenvolvendo num local tropical, exótico, no qual o catolicismo e a cultura portuguesa eram uma imposição contra natura. Claro que fui influenciada pelo espírito do lugar, tanto como pela cultura portuguesa. Claro que essa dualidade existe em mim. Durante 13 anos da minha vida, os primeiros, eu me considerava moçambicana. Mas vivo em Portugal há 43 anos e preciso de ter um chão ao qual chame meu. Preciso de paz e segurança e Portugal é o país onde as encontro, onde me sinto bem. Assim, considero-me uma portuguesa vira-latas. Uma portuguesa estrangeirada, mas uma portuguesa muito verdadeira.
JC – Foi difícil escrever sobre o seu pai, figura através da qual o livro revela tantos aspectos do racismo e machismo da ocupação portuguesa de Moçambique?
ISABELA – Não. Foi muito fácil. Foi um texto que me saiu como um jorro de lava de um vulcão que vive em erupção adiada. Eu penso que esperava a morte do meu pai para poder escrevê-lo. E assim que fiz o luto, assim que organizei as minhas emoções fazendo alguma psicanálise, o texto começou a surgir com uma força e uma violência incontidas. Devo dizer que este livro não foi muito trabalhado. Ele é mesmo matéria bruta, não lapidada
JC – O livro a ajudou a se reconciliar com a memória do seu pai? Ou a afastou mais da figura dele?
ISABELA – Ajudou-me a poder aceitá-lo e amá-lo. O meu pai é a pessoa mais importante da minha vida. A pessoa que mais amei. Que amo, que me acompanha para todo o lado, que me protege, com quem troco impressões sobre a vida. O livro ajudou-me a despejar o saco. Foi uma forma de lhe dizer: “agora estás aí, impossibilitado de responder, num lugar onde já espero que tenhas compreendido o que fizeste errado, portanto vais ouvir-me até ao final”. Ele escutou, deu-me razão e pede perdão através de mim. Agora podemos os dois viver em paz, finalmente. Ele é um excelente pai e um excelente homem e eu sou a sua filha muito amada.
JC – A linguagem do livro é ingênua e (talvez justamente por ser ingênua, límpida) também reveladora. Como foi encontrar a forma ideal de contar eventos tão duros da sua vida, da sua família e da colonização portuguesa?
ISABELA – Não houve uma procura da forma ideal. O discurso impôs-se, saiu. Eu já disse que foi um jorro de lava. Não deve haver muitos livros tão pouco trabalhados na história da literatura. A única coisa que tive consciência de procurar foi a linguagem da criança, o olhar da criança. O seu coração. Ingênuo e límpido, como você diz. Eu queria que o discurso fosse o da menina, não o da mulher. Isso não foi totalmente conseguido. Há momentos em que se nota mais a mulher, mas a minha preocupação foi apenas dar voz à criança ferida que ficou lá atrás.
JC – O Brasil, claro, tem um passado colonial distinto, mas marcas do racismo e do poder colonial permaneceram e permanecem – e a leitura de Caderno de Memórias Coloniais reitera alguns elementos e revela outras. Notou a persistência dessas cicatrizes da ocupação portuguesa na sua passagem pelo Brasil? Como acredita que os portugueses veem hoje seu papel na colonização na América do Sul?
ISABELA – Sabe que eu nunca imaginei o Brasil como um lugar marcado pela colonização portuguesa. No passado, para mim, o Brasil era o lugar da arquitetura de Niemeyer, da paisagem maravilhosa do Rio de Janeiro, da Amazônia, das baianas rodando com as suas compridas saias brancas, da música do Chico, do Caetano Veloso e de mil outros extraordinários músicos, do Grande Sertão Veredas muito branqueado, enfim, um lugar que era o paraíso. Era dessa forma que o Brasil era visto por nós, portugueses, nas ex-colônias ou no continente europeu, nos anos 1960 e 1970. Eu penso que havia desinformação. Essa ideia foi caindo por terra quando os brasileiros começaram a imigrar para Portugal, nos anos 1990 do século passado e a mostrarem-nos uma outra realidade. Mas só percebi mesmo, quando vim cá, pela primeira vez, há dois anos e de repente me senti em Lourenço Marques. Parecia o lugar onde eu tinha nascido, reconstituído. A mesma paisagem tropical, os mesmo criados uniformizados pelas ruas, os brancos na sua vida de brancos e os negros na sua vida de negros, vivendo da servidão aos brancos. Tudo isto normalizado. Aceite. Foi como viajar no tempo. Foi perturbador. E continua sendo.
Quanto à forma como os portugueses veem o seu papel na colonização da América do Sul é complicado. Você pensa que os alemães sentem grande vontade de falar do que se passou na 2ª Guerra Mundial? Enfim, é um assunto devidamente estudado pelos acadêmicos, mas esses não têm tempo de antena na televisão, em horário nobre. Eu diria que as questões coloniais entraram no discurso da classe alta urbana e instruída, em Portugal, mas que ainda não a transcenderam.
JC – Você parece colocar também eventos da sua vida pessoal no seu outro livro, A Gorda. O ponto de partida para a sua escrita é a própria experiência? O que pensa em escrever na sua próxima obra?
ISABELA – Não me identifico com uma arte que não parta da experiência. Em nenhuma circunstância. A ficção pura parte do que é vivido, dos pensamentos, dos desejos e urgências que a experiência gera. Se você me fechar num quarto, o que eu escrever refletirá esse enclausuramento, mesmo que eu construa uma narrativa utópica sobre um mundo sem muros.
A próxima obra: vai me desculpar, mas eu sou muito supersticiosa e não falo sobre trabalhos em curso. Posso dizer-lhe que estou a trabalhar com paixão. Que eu só trabalho com paixão.