Esqueça tudo que você conhece ou ouviu falar sobre segurança viária. A babilônia, no mais puro conceito de caos, fica na periferia das cidades. Aliás, a Índia e o seu quase suicida trânsito e modelo de mobilidade urbana estão aqui, nos nossos subúrbios. E ninguém vê. Ou, quando vê, interfere muito pouco. A maioria dos moradores dos bairros de classe média, que enfrentam, na maioria das vezes, apenas problemas com a rede semafórica ou uma ou outra colisão no percurso para o trabalho, não faz ideia do que se passa no trânsito da periferia. De fato, a babilônia está lá.
Essa exclusão de tudo nos subúrbios e os impactos dela - inclusive para o sistema de transporte público coletivo por ônibus - são a abordagem da terceira e última reportagem da série Trânsito Travado, que o JC vem publicando para discutir problemas, desafios e soluções para esse fenômeno diário, permanente e perigoso, que envolve a todos e diz respeito a todos.
Confira a série Trânsito travado:
Os bairros do Recife onde o trânsito é mais perigoso
Tecnologia fica a desejar na gestão do trânsito
Apesar dos problemas, gestão municipal tem resultados positivos
Recife, mesmo com a pandemia, é a capital mais congestionada do Brasil. De novo
Aplicativos como aliados na gestão do trânsito nas cidades
Transporte público é quem mais sofre com o trânsito travado nas periferia
Trânsito faz mal à saúde física e mental
AUSÊNCIA TOTAL DE TUDO
Sob o aspecto da mobilidade urbana, as periferias das cidades não possuem nada. Falta de tudo, tudo, tudo. Da sinalização horizontal das vias às calçadas. Placas são raras. Faltam ruas para trafegar e muitas das avenidas principais têm tantos problemas e sofrem tantas interferências urbanas que mais se parecem vielas.
Além da ausência de infraestrutura, falta respeito às regras pelos moradores e pessoas que circulam nessas regiões, desrespeito que é estimulado pela pouca presença do poder público. Diferentemente dos bairros de classe média e dos grandes corredores viários da cidade, não é rotineiro ver fiscalização, ordenamento e disciplina do tráfego.
O subúrbio vive à margem das regras urbanísticas, sem direito à qualidade de vida. A mobilidade urbana na maioria desses locais é caótica. A reportagem do JC, por exemplo, ficou 15 minutos presa no tráfego, com tudo completamente parado (travado mesmo), na Avenida Nova Descoberta, em Nova Descoberta, um dos subúrbios mais movimentados da Zona Norte do Recife e que dá acesso a diversos outros bairros da região. Era uma quarta-feira, às 17h.
A razão do travamento: uma via com menos de sete metros de largura, por onde passam linhas de ônibus, caminhões, carros e muitas motos, e que ainda tem veículos estacionados. “Vivemos com pouco. Muito pouco. Essa confusão é permanente, todos os dias, e ainda maior nos horários de pico da manhã e da tarde, e aos sábados. Falta a educação da população, sem dúvida, mas falta também a presença de agentes de trânsito, por exemplo, para fazer as pessoas respeitarem as regras”, analisa Carlos Eduardo Pinto, que reside nas imediações da Avenida Nova Descoberta e acompanha o cenário caótico da região diariamente.
As dificuldades de mobilidade dos moradores de alguns subúrbios do Grande Recife é conhecida de todos, inclusive do poder público. É em bairros da periferia, alguns próximos ao Centro, mas extremamente carentes de infraestrutura, onde residem 80% da população metropolitana. Na capital, menos de 200 mil dos 1,6 milhão de habitantes residem nos chamados bairros de classe média, mais estruturados e atendidos.
A maioria da população está mesmo é em bairros periféricos. Lugares onde vielas de cinco metros são consideradas avenidas, por onde os ônibus se espremem para embarcar e desembarcar o trabalhador antes de entrar nos grandes corredores viários da cidade. Ruas quase sempre sem sinalização de trânsito e tomadas por lixo e obstáculos de todo tipo.
Áreas totalmente desprovidas, transformadas em terra sem lei. O cenário escolhido é recifense, mas a realidade é brasileira, pode ser vista nas muitas periferias do Brasil, independentemente de região ou Estado.
A dificuldade de ir e vir não existe apenas nas Avenidas Boa Viagem, Conselheiro Aguiar (Zona Sul do Recife), Rosa e Silva e Rui Barbosa (Zona Norte), Abdias de Carvalho e Caxangá (Zona Oeste) ou Agamenon Magalhães (área central), como muita gente pensa.
Todas enfrentam sérios problemas de retenção diariamente, mas são algumas das vias que sustentam o sistema viário do Grande Recife e, por isso, ainda recebem atenção, com a presença de fiscalização eletrônica, controladores e até agentes de trânsito. São privilegiadas. A periferia não. Está esquecida. No aspecto da mobilidade, totalmente ignorada. As atenções, quando dadas, são todas para as grandes avenidas.
Se falta acessibilidade nas ruas, imagine nas calçadas. Elas sequer existem. Quando há o passeio público, quase sempre ele é desrespeitado, obstruído. Para quem é ciclista, o subúrbio é um lugar ainda mais perigoso. Só a necessidade faz trabalhadores usarem a bicicleta e se arriscarem nas estreitas ruas.
Não é à toa que, com exceção de Boa Viagem - o primeiro do ranking -, os bairros do Recife com o maior número de veículos registrados em 2022 estão na periferia: Imbiribeira (Zona Sul), Iputinga e Várzea (Zona Oeste), e o Ibura (Zona Sul).
No Grande Recife, o cenário é o mesmo. Em Jaboatão dos Guararapes, os bairros de Prazeres e Cajueiro Seco ocupam o terceiro e quarto lugar, perdendo apenas para Piedade e Candeias, considerados de classe média e alta no município.
Já em Olinda, a periferia domina, liderando o ranking com os bairros de Rio Doce, Jardim Atlântico e Peixinhos, nessa ordem. Ganham para Casa Caiada e Bairro Novo. Ou seja, a periferia é maioria e, por isso, o trânsito nessa região precisa de mais atenção.