Não há cidade sem comércio, e não há, nem um, nem outro, sem gente. A Avenida Dantas Barreto, que corta os bairros de Santo Antônio e São José, no Centro do Recife, parece conhecer bem tal relação. É nela que está localizada a Calçada dos Mascates, mais conhecida como Camelódromo, construído em 1994 pelo governo de Jarbas Vasconcelos com o intuito de ordenar os tantos ambulantes da região.
Mas, na medida em que a via é percorrida no sentido Sul, os gritos que anunciam produtos são silenciados. Os clientes desaparecem. E, com eles, também se vão os vendedores. Nessa dinâmica, hoje só três dos seis módulos do equipamento com capacidade para mais de mil boxes estão ocupados; e, ainda assim, acumulam mazelas.
O choque inicial para quem chega ao Camelódromo é a tamanha desordem e evidente falta de controle urbano no local, principalmente no primeiro módulo, que é considerado o melhor em termos de movimentação de clientes, segundo estudo de 2015 feito pelas pesquisadoras Lourdes Cunha e Clarissa Duarte, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
As pequenas lojas e seus produtos tomam conta das calçadas e, por vezes, até das vias; atrapalhando a circulação de veículos no local - que, diga-se de passagem, também acontece dentro da própria estrutura, onde percorrem livremente bicicletas e motocicletas pelos corredores, no mesmo espaço que os pedestres.
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Todo o equipamento tem uma pintura desgastada e apresenta, em alguns pontos, rachaduras. Ao olhar para o alto, um emaranhado de fios elétricos completa a paisagem; estes que, segundo a Prefeitura do Recife, foram trocados no começo deste ano.
O primeiro andar, criado inicialmente para ser um depósito de mercadorias, é fechado com cadeados. Quem trabalha no mercado afirma que nada além de entulhos de lixo e animais fica guardado ali, onde o abandono toma conta. “É todo sujo, não dá nem para subir”, disse o lojista Luvanelson da Silva, 58.
Os corredores dos boxes aparentemente são limpos com regularidade, mas o comerciante Welson Amaral, de 36 anos, esclarece: “cada lojista se preocupa com a limpeza dos arredores das suas lojas. É muito difícil vermos equipes da prefeitura passando”. O mesmo, que é proprietário do ponto há 15 anos, revela que precisa contratar um segurança particular para cuidar do local, "porque a polícia só passa se for para multar os carros”.
O lojista é direto quando perguntado sobre o principal problema do mercado: “falta infraestrutura no banheiro para clientes e lojistas. Só tem um, e praticamente não uso. Prefiro ir no de amigos que têm lojas próximas” — uma queixa comum no discurso de comerciantes e clientes com quem a reportagem conversou.
“Venho umas três vezes por semana ao Camelódromo há mais de 20 anos. Isso aqui era tudo tabuleiro e depois fizeram os quiosques. Ainda tem coisas que podem mudar. Lá para baixo (aponta para os últimos módulos), já é mais desorganizado. Tem o pessoal da frente (início da avenida) também. Podiam tirá-los dali, fazer quiosques, dar a eles um lugar melhor, abrir mais ao redor do camelódromo”, sugere o cliente Marcos Moreira, de 52 anos, que também é comerciante, mas não no equipamento.
Dono de um quiosque de variedades, Luvanelson da Silva, 58, compartilha das mesmas e de outras críticas em relação à manutenção do local. “Aqui não tem segurança, os banheiros estão todos quebrados, tem pedaços de reboco caindo”, relatou.
Comerciante há 20 anos no Camelódromo, ele viu os tempos áureos do local, e lamenta a sua atual situação. “No começo era bom, organizado, limpo, tinha fiscal, não podia andar por aqui de bicicleta, os banheiros eram super organizados, era coisa de primeira linha. O que mais tem é roubo aqui dentro. Se tivesse melhoria, ia atrair mais clientes.”
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O Camelódromo da Dantas Barreto foi vitrine de gestão do então secretário de Infraestrutura do Recife, João Braga, ao concorrer às eleições municipais de 1996 contra o deputado Roberto Magalhães — que venceu a disputa.
Os arquitetos que o projetaram, os pernambucanos Ronaldo L'Amour e Zeca Brandão, receberam prestígio nacional e internacional pela ideia, e chegaram a receber o Prêmio Internacional de Desenho Urbano na 10ª Bienal de Arquitetura de Quito pela sua criação, que contemplava, ao todo, três praças de alimentação e seis baterias de sanitários, sendo três femininos e três masculinos.
O que, então, pode ter dado errado?
O título de Calçada dos Mascates, dado à área onde hoje fica o Camelódromo da Dantas Barreto, remonta à criação do Recife, cidade que nasceu junto ao comércio. Por ser um território portuário, desde sua fundação, no século XVI, o então vilarejo teve a área central ocupada por vendedores, que escoavam as mercadorias que chegavam ao ancoradouro do exterior do país e do interior do estado.
A importância de tal dinâmica urbana foi tanta que a atual capital pernambucana ficou conhecida como “a cidade dos mascates", uma nomenclatura pejorativa dada por senhores de terras e de engenhos pernambucanos, que estavam concentrados em Olinda, aos vendedores recifenses.
O historiador Severino (Biu) Vicente, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), avalia que o comércio na área que agora funciona o Camelódromo começou a capengar ainda na polêmica abertura da Avenida Dantas Barreto pela gestão de Augusto Lucena, em 1973, que pôs ao chão casas e importantes monumentos da cidade, como a Igreja dos Martírios.
“O bairro foi dividido em duas partes com a ideia de fazer crescer o comércio na região, mas o projeto não funcionou, muita gente se mudou e o comércio começou a fraquejar. O Camelódromo não conseguiu reativar a vida comercial que havia antes, porque o que mantém uma cidade viva são as famílias, mas elas saíram de lá”, defende.
O estudo já citado da Unicap reitera a importância de haver um intenso tráfego de pessoas para o comércio de rua sobreviver, já que compras dessa natureza são categorizadas como “por impulso” ou “não planejadas”.
Demonstra, também, uma queda de transeuntes ao longo do sentido Norte/Sul da via, fazendo com que os últimos módulos percam movimento e, consequentemente, deixem de ser ocupados pelos vendedores, que voltaram a comercializar em tabuleiros irregulares no começo da Dantas Barreto. Apesar de haver paradas de ônibus por toda a avenida, as autoras concluíram que as utilizadas por uma maior quantidade de pessoas estão próximas ao Pátio do Carmo, perto dos primeiros módulos.
Segundo Zeca Brandão, nem sempre foi assim. Fotos tiradas pelos projetistas nos primeiros anos de funcionamento do equipamento mostram que os seis módulos eram totalmente ocupados por comerciantes, e pareciam funcionar dentro de seus próprios limites, sem ocupar as calçadas e a avenida.
“Implantamos a distribuição dos ônibus e estava tudo funcionando. Mas, quando tiraram os ônibus e os colocaram próximos da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, matou o fluxo”, citou. Ele conta que propôs a criação de um terminal de passageiros na área do sexto módulo — onde hoje funciona a Feira do Troca — há mais de 10 anos, mas que o projeto nunca foi para frente, apesar do ponto já ser usado como estacionamento de ônibus.
Para o arquiteto, o que falta para assegurar um funcionamento ordenado no Camelódromo é um bom plano de gestão. “No início, funcionou muito bem. Depois, faltou o que sempre falta nos projetos do Brasil e, sobretudo, nos do Recife; que é um plano de gestão. Se não tiver fiscalização, os camelôs começam a se deslocar, a chegar outros e a bagunçar tudo”.
Brandão é, mesmo assim, otimista em relação ao reavivamento do mercado, desde que haja compromisso público. “Dá para resolver aquilo, mas tem que ter uma gestão forte. O comércio informal é muito visto como um problema, mas sempre achei o contrário. Ele tem uma energia e uma dinâmica urbana que podem potencializar aquela parte da cidade”, defende.
O que diz o poder público
A Prefeitura do Recife afirmou que está previsto, para os próximos 90 dias, “o lançamento de edital para contratação de projeto tanto para a revitalização da Avenida Dantas Barreto, quanto para a requalificação da estrutura do comércio popular do Camelódromo”, e que o Projeto Novo Recife deve “proporcionar uma melhoria no fluxo de pessoas no local”. A Autarquia de Serviços Urbanos (Csurb) informou que a limpeza do camelódromo é feita diariamente por seis auxiliares de serviços gerais.
A Secretaria de Defesa Social (SDS) disse que a segurança do território do Camelódromo e do Centro do Recife é feita pelo 16º Batalhão da Polícia Militar, “que atua de forma integrada com as unidades da Polícia Civil”.
Afirmou, ainda, que, “neste primeiro quadrimestre, a delegacia da Boa Vista identificou e prendeu pessoas acusadas da prática de roubos e especialmente furtos, inclusive com apoio de imagens coletadas por circuitos de câmera”, sem especificar quantas, e comunicou que a população pode prestar queixa ou denunciar crimes pelo 181 ou pelo WhatsApp (81) 99488-3455.
A Polícia Militar esclareceu que é realizado policiamento ostensivo no Camelódromo através de Guarnições Táticas, motopatrulheiros e Ciclo Patrulha, com o apoio do Grupo de Apoio Tático Itinerante (GATI), e que houve uma redução na área de cerca de 5% nos Crimes Violentos contra o Patrimônio (CVP), em relação ao período de janeiro a Junho dos anos de 2020 e 2021. Além disso, disse que intensificará as rondas no local, e se colocou à disposição para receber sugestões que possam fortalecer sua atuação na área.