Desde criança, a enfermeira Fernanda Falcão ouvia da família que ser travesti era algo “demoníaco” - até se descobrir uma. Então, ao se apresentar como uma mulher trans, foi expulsa de casa com apenas 15 anos, e precisou, a contragosto, prostituir-se para se alimentar. Ela, hoje com 29 anos, diz que a própria história poderia ter sido mais fácil se tivesse encontrado apoio institucional do Estado - algo que, em Pernambuco, mas também em todo o Brasil, ainda considera insuficiente, mesmo diante da alarmante violência contra pessoas LGBTQIA+, que hoje têm como uma das principais demandas a criação de casas de acolhimento.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) levantou que 140 pessoas trans foram assassinadas no Brasil em 2021. Dessas, 135 eram travestis e mulheres transexuais, e cinco eram homens trans e pessoas trans masculinas. O dado, recentemente divulgado em dossiê, representou uma queda em relação a 2020 (quando 175 trans foram mortos), mas ainda figura acima da média (123,8), calculada entre 2008 e 2021.
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Pernambuco foi apontado como o quinto estado com mais assassinatos contra a população trans em 2021 em números absolutos, subindo duas posições em relação a 2020, quando foram registrados sete casos. Levando em conta os dados dos últimos cinco anos, o Estado figurou em sexto lugar com mais mortes de transexuais, com 46 casos. O dossiê ainda aponta que o processo de violência contra essas pessoas começa muito antes da morte. "Devido ao processo de exclusão familiar, social e escolar", recorrente entre a população trans, "estima-se que 13 anos de idade seja a média em que travestis e mulheres transexuais sejam expulsas de casa pelos pais", pontou o documento.
No ano passado, frequentes assassinatos com requintes de crueldade contra a população trans no Estado chamaram atenção da mídia em todo o País. Entre eles, os de Kalyndra Selva, Fabiana da Silva, Crismilly Pérola e Roberta Nascimento - sendo este último o que mais reverberou. Em junho de 2021, aos 33 anos, a mulher transexual foi queimada viva nas ruas do Cais de Santa Rita, no centro da capital pernambucana, onde vivia, e morreu duas semanas depois por não suportar os ferimentos causados em mais de 40% de seu corpo, que resultaram, inclusive, na amputação de seus dois braços.
O apelo do caso foi tanto a ponto do prefeito João Campos (PSB) prometer a construção de uma “Casa de Acolhida LGBTI+”, que levaria o nome da vítima. No entanto, representantes da Rede Autônoma da Travestis e transexuais de Pernambuco (Ratts-PE) divulgaram nota pública no último sábado (29) cobrando a publicação do edital necessário para dar início às atividades, alegando que a Prefeitura do Recife teria se comprometido a fazê-lo até dezembro de 2021. “O atraso de um mês acirra as vulnerabilidades das pessoas LGBT em situação de rua, além de indicar graves inconsistências no compromisso institucional com as vidas trans e travestis recifenses”, pontuou a rede.
O pedido é assinado pela Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco (Natrape), Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans), Monstruosas, Rede de Pessoas Trans Vivendo com Hiv Aids (Rntthp), Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo (GTP+) e pela Frente Trans PE.
“Essas casas de acolhimento são necessárias pelo contexto geral de saúde e assistência social, porque historicamente temos uma população que é expulsa de casa muito cedo, que tem seu corpo violado, com estupros corretivos acontecendo em suas próprias casas. O corpo trans é um corpo que o Estado brasileiro precisa cuidar, precisa entender que, pela dificuldade do acesso às políticas já existentes, é vulnerável a cada dia mais e vira alvo a todo momento em que ele quer construir algo”, pontuou Fernanda Falcão, que coordena a Rede Nacional de Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV.
Ao JC, a Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Política sobre Drogas, esclareceu que “o Termo de Referência para implantação de uma casa de acolhimento LGBTI+ para pessoas em situação de vulnerabilidade já foi iniciado e encontra-se no processo de cotação de serviço”. A previsão informada à reportagem é que o Edital de chamamento público, que convocará Organizações Sociais, seja divulgado até a segunda quinzena de fevereiro.
A carência de equipamentos de apoio não acontece só no Recife. Consultadas, as prefeituras de Olinda, Paulista, Igarassu e Camaragibe não possuem centros exclusivos para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+, apenas espaços que prestam um suporte temporário, ou políticas de saúde voltadas para trans. No País, destacam-se iniciativas voluntárias, como a Casa Neon Cunha, em São Paulo, a Casa Brasil, no Rio Grande do Norte, a Casa Lilás, na Bahia, mantidas através de financiamentos internacionais e coletivos.
A Ratts também propôs ao Governo do Estado a criação de uma casa de atenção integral às travestis e pessoas trans, com atuação em todas as regiões, segundo Caia Maia, mas até então não obteve resposta. "O documento foi elaborado por representantes de diversas entidades da sociedade civil com atuações pertinentes nos campos dos direitos humanos e LGBT. Entregamos a carta em novembro, com a promessa de termos um retorno em janeiro, porém terminamos o mês sem qualquer agendamento", apontou.
Em artigo para a Universidade de Brasília (UNB), a pesquisadora e mulher trans Maria Léo Fontes Borges Araruna analisou que para valer-se do direito à cidade, esta precisa "ser reformulada" para ela e o grupo a que pertence. "E isso só vai acontecer se houver a escuta ativa e o atendimento das demandas políticas de grupos sociais vulneráveis. Nossas vozes e nossas histórias são grandiosas e, ao serem percebidas, podem oferecer novas possibilidades de existir e habitar o mundo", concluiu a advogada.
Ações para população LGBTQIA+ em Pernambuco
O Governo do Estado afirmou que vem atuando para fortalecer a população LGBTQIA+ "na prevenção de casos de violências contra os indivíduos da comunidade". Para isso, disse promover capacitações com profissionais de equipamentos públicos da Assistência Social e outras secretarias que lidam com essa população. Ainda citou o Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que realiza formações, prestação de serviços e atendimentos humanizados. Informou, também, ter sido o primeiro estado do país a implantar uma Política (2015) e criar uma Coordenação Estadual específica de Saúde Integral para pessoas LGBT, e atuar por meio do Comitê de Prevenção e Enfrentamento da Violência LGBTfóbica para estruturar as ações de enfrentamento a essas violações.
A Prefeitura do Recife destacou, dentre as ações rotineiras, destaca-se “Saúde na Pista”, realizada pela Política de Saúde LGBT da Secretaria de Saúde do Recife em parceria com a Gerência de Livre Orientação Sexual da Secretaria Executiva de Direitos Humanos, que realiza um serviço de abordagem e atendimento à população de travestis e transexuais que trabalham nas ruas durante a noite. A Prefeitura do Paulista informou que está implantando algumas políticas públicas no município. A Diretoria LGBT trabalha na elaboração dessas ações e oferece suporte, disponibilizando atendimento na sede da Secretaria de Políticas Sociais e Direitos Humanos, localizada no Centro Administrativo da Prefeitura de Paulista (Av. Prefeito Geraldo Pinho Alves, 222, Maranguape 1).
A Prefeitura de Olinda disse realizar ações de conscientização sobre direitos e para combate da violência que atinge o público LGBTQIA+ durante todo ano, além de oferecer um serviço de escuta e acolhimento para essas pessoas, de segunda a sexta, das 8h às 14h. O atendimento acontece na sede da pasta, na Av. Getúlio Vargas, 536 – Bairro Novo. A Prefeitura de Igarassu pontuou a instauração do ambulatório LGBT, que entra em vigor este ano, além de mutirões de retificação de nome e gênero de pessoas trans e travestis, monitoramento em parceria com as delegacias do município sobre casos de violência, ações de saúde e segurança alimentar e oferta de cursos profissionalizantes para esta população.
Já a Prefeitura de Camaragibe disse contar com o Ambulatório Darlen Gasparelli para acolher e servir a população LGBTQIA+. "Usuários podem procurar o espaço por demanda espontânea ou com encaminhamento das emergências, centros médicos e unidades básicas de saúde. No ambulatório são oferecidos serviços médicos clínico e ambulatorial; e de psicoterapia tanto para a população específica quanto para suas famílias. Palestras, grupos de trabalho e rodas de diálogo são viabilizadas também na unidade". O Ambulatório Darlen Gasparelli está localizado na Rua Pedro de Paulo Rocha, 792, centro, Camaragibe, atendendo de segunda à sexta-feira, das 8h às 17. A unidade também conta com o telefone de contato: (81) 98765-4352.