Até onde os desastres naturais são simplesmente “naturais”? As chuvas que atingiram o Nordeste do Brasil entre maio e junho — provocando dezenas de mortes e incontáveis perdas materiais, principalmente em Pernambuco — foram cerca de 20% mais fortes devido às mudanças climáticas causadas por ação humana no planeta. A conclusão está em estudo feito pelo World Weather Attribution (WWA) e divulgado em primeira mão pelo JC nesta terça-feira (5).
Para chegar até esse resultado, pesquisadores do Brasil, Holanda, França, Estados Unidos e Reino Unido analisaram dados de níveis de chuva colhidos desde 1970 em 75 estações meteorológicas em períodos de 7 a 15 dias. Elas estão distribuídas nas regiões mais afetadas, nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Assim, descobriram que as chuvas que causaram transtornos no Nordeste ainda são consideradas raras, já que há uma chance em 500 ou em 1.000 de acontecerem em um único ano. No entanto, os cientistas pontuaram que a intensidade da precipitação foi maior devido ao aumento da temperatura do planeta — que está 1,2ºC mais quente que no final de 1800 devido às emissões humanas de gases de efeito estufa.
“O episódio de chuvas intensas que causou a maioria dos impactos aconteceu em um cenário de estação chuvosa relativamente intensa. Foi um evento raro, mesmo sob o clima de hoje, mas à medida que o planeta aquece, podemos esperar que eventos mais incomuns se tornem mais frequentes”, afirmou o meteorologista da Agência Pernambuco de Águas e Clima (Apac) e integrante do estudo, Thiago Luiz do Vale Silva.
No final de maio, os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe registraram desastrosos temporais. Em menos de 24 horas nos dias 27 e 28 de maio, choveu 70% do que costuma cair em todo mês de maio em Pernambuco, por exemplo. Neste Estado e em Alagoas, 80 municípios declararam situação de emergência após os eventos.
O relatório também traz que o impacto humano e econômico foi agravado pelo número de pessoas que vivem em áreas com risco de inundações e deslizamentos de terra, além da lacuna entre o alerta precoce e as ações governamentais. Em Pernambuco, por exemplo, a Apac havia avisado sobre a possibilidade de chuvas intensas em 28 de maio três dias antes — mesmo assim, o poder público não organizou a retirada dos moradores de morros inseguros até abrigos.
Isso resultou na morte de 131 pessoas em decorrência das chuvas no Estado desde 25 de maio até esta terça (5); 120 delas apenas por deslizamentos de barreiras no Grande Recife — que afetam desproporcionalmente as comunidades vulneráveis, de baixa renda, que normalmente não têm outra opção de moradia. Até hoje, novas vítimas das chuvas são contabilizadas.
O motorista de ônibus Reginaldo Ramos Feitosa, morador do Jardim Monte Verde, entre Recife e Jaboatão dos Guararapes, perdeu 12 pessoas da mesma família, inclusive a filha. “Minha filha, que era engenheira, sempre dizia: ‘pai, agora que estou trabalhando vou ter condições de tirar você, minha mãe e minha irmã daqui’, mas o sonho foi interrompido por essa tragédia", disse ele em matéria publicada na última semana.
Uma série de reportagens do JC mostrou quais medidas poderiam ter sido tomadas para evitar o problema, expondo, inclusive, o baixo orçamento destinado pela prefeitura às áreas de morro da capital pernambucana nos últimos anos — 1,48% da despesa anual de 2021.
“À medida que as cidades crescem, os planejadores precisam encontrar maneiras de diminuir a exposição das pessoas a eventos climáticos extremos e aumentar a resiliência. Um desenho urbano eficaz pode reduzir muito os impactos de chuvas fortes e salvar vidas e infraestrutura, assim como melhorar a eficácia dos sistemas de alerta precoce que levam a uma ação rápida antes de eventos extremos”, pontuou Alexandre Köberle, pesquisador do Grantham Institute do Imperial College London.