Cidades boas para as crianças são cidades boas para todos. São cidades mais humanas, que constroem comunidades mais sustentáveis e fortes. Por isso, mobilidade urbana e primeira infância têm tudo a ver. São intrínsecas, inerentes uma à outra. As crianças e seus cuidadores - sejam pais, avós, tios, primos ou babás - vivem mais a cidade do que muitos adultos em sua rotina diária casa-trabalho. E precisam dela para crescer bem, física e socialmente. As cidades devem ser provocadoras desse desenvolvimento integral e necessário. Sem a participação ativa na vivência dos espaços urbanos ele não acontece como deveria. E produzimos o emparedamento da infância, algo que não faz bem nem às pessoas nem às cidades.
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Pensando nessa lógica, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), com o apoio da Fundação Bernard van Leer, elaborou o estudo Primeiros passos: mobilidade urbana na primeira infância, que relaciona os impactos e consequências da ausência de visão sobre cidades para as crianças. O estudo, realizado entre 2019 e 2020, mostra os desafios enfrentados pelos cuidadores das crianças nos deslocamentos cotidianos, sob a ótica da infraestrutura das ruas e equipamentos urbanos, e a partir do acesso e uso do transporte público coletivo por ônibus. O levantamento ouviu pessoas que cuidam de crianças, principalmente de 0 a 3 anos, para entender seus interesses e necessidades. O objetivo foi compreender e analisar a relação entre a mobilidade urbana e os aspectos que impactam o desenvolvimento e a qualidade de vida da primeira infância dos bairros em que vivem e acessam no percurso para as atividades diárias.
O estudo teve dois momentos distintos. No primeiro, a perspectiva dos cuidadores foi a base para identificar os impactos diretos e indiretos da qualidade do espaço urbano na vida das crianças quando estão se movendo. Tendo o transporte por ônibus como eixo principal. No segundo momento foi feito o detalhamento desses obstáculos. O estudo foi realizado com base em um estudo de caso de Recife, mas possui recomendações gerais que podem ser aplicadas a outras cidades. Entre as conclusões, que o transporte público e a mobilidade a pé, como já era de se esperar, têm papel fundamental na discussão e na vida das crianças e cuidadores. Juntos, são responsáveis por mais de 70% das viagens realizadas por motivo de trabalho e de 80% por motivo de educação na cidade de Recife. Quando estes percentuais são analisados por faixa de renda, fica claro que o transporte público por ônibus possui um papel ainda mais central, sendo o principal modo de transporte utilizado para pessoas com renda abaixo de três salários mínimos, tanto por motivos de educação quanto de trabalho.
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“Os bebês e as crianças pequenas vivem nas cidades tanto quanto ou até mais do que os adultos. Quase 75% das crianças pequenas brasileiras estão fora das creches, às vezes por falta de vagas e às vezes por opção dos pais. Onde essa criança pequena vive então? Ela vive em casa e na residência dos avós, dos tios, de vizinhos, e nas cidades com os pais. Ela os acompanha em atividades cotidianas como ir ao supermercado, ao posto de saúde e à farmácia. A criança vai junto o tempo todo e circulam na cidade de forma muito diferente do adulto, que acorda de manhã, pega um transporte público até o trabalho e volta à noite”, ensina a psicóloga Cláudia Vidigal, da Fundação BVLF (Bernand van Leer Foundation), com forte e ampla atuação na causa da primeira infância.
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A especialista alerta para o fato de que a sociedade, os gestores e planejadores públicos precisam entender que a mobilidade urbana não é um problema só de adultos. “Por que esses deslocamentos cotidianos não podem ser um momento de aprendizado? Serem transformados em desenvolvimento e inserção das crianças à cidade? Enquanto esperam o ônibus poderiam estar aprendendo a contar, a conferir sua altura e brincando de amarelinha. Por que nossos pontos de ônibus não podem ser adaptados para esse desenvolvimento? Afinal, estamos falando de 21 milhões de crianças de até seis anos de idade”, provoca.
A psicóloga defende três eixos fundamentais na relação da mobilidade urbana com a primeira infância: segurança, conforto e interatividade. “A segurança é, como exemplo, o distanciamento das paradas de ônibus da guia da rua para dar mais espaço para a criança enquanto aguarda o ônibus. Conforto é sombra, abrigo de chuva, calçadas melhores construídas, trafegáveis para carrinhos de bebê, por exemplo. E interatividade são pequenos componentes que a gente pode trazer na cidade para que ela se torne mais brincante. As crianças não precisam ir exclusivamente para o parquinho para brincar. Elas deveriam poder brincar em qualquer calçada. Quando você prepara uma cidade para uma criança você contribui para que ela tenha uma perspectiva diferente quando for adulta. Se a criança desde pequena compreende que a rua é algo dela, faz parte de sua vida, constrói uma relação de mais amor com a cidade”, ensina Cláudia, com mais de 20 anos de experiência na defesa da primeira infância no setor público e privado.
PERTENCIMENTO
O pertencimento à cidade a que se refere a especialista também é defendido pela Alana, organizacao socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da crianca. “Quanto mais inseridas na cidade, maior a capacidade de desenvolvimento dessas crianças”. Quem faz o alerta é JP Amaral, coordenador do Programa Criança e Natureza da instituição. “O impacto da mobilidade urbana na primeira infância é grande e passa pela questão da atividade física e da visão sobre a cidade. Numa sociedade que tem uma mobilidade padrão, prioritariamente motorizada e individual, estimamos que 90% das crianças vivem confinadas em casa. Muitas vão para a escola confinadas no carro, passam o dia confinadas na escola e voltam nessa mesma situação. É o que chamamos de emparedamento da infância”, afirma.
Os bebês e as crianças pequenas vivem nas cidades tanto quanto ou até mais do que os adultos. Quase 75% das crianças pequenas brasileiras estão fora das creches, às vezes por falta de vagas e às vezes por opção dos pais. Onde essa criança pequena vive então? Ela vive em casa e na residência dos avós, dos tios, de vizinhos, e nas cidades com os pais. Ela os acompanha em atividades cotidianas como ir ao supermercado, ao posto de saúde e à farmácia. A criança vai junto o tempo todo e circulam na cidade de forma muito diferente do adulto, que acorda de manhã, pega um transporte público até o trabalho e volta à noite”,Cláudia Vidigal, da Fundação BVLF (Bernand van Leer Foundation)
As consequências desse “emparedamento” são sérias. “O fato de não estar exposta ao caminhar, ao pedalar e ao uso do transporte público compromete a saúde física das crianças. Afeta a percepção que têm da cidade. Uma atividade muito usada nas escolas é pedir para que desenhem o percurso entre a casa e a escola. Aqueles que vão de carro geralmente fazem uma linha reta, sem grandes referências, no máximo uma loja que percebeu da janela do carro. Já os que fazem o percurso a pé ou de bicicleta têm mais referências, visões. Isso é uma grande bagagem positiva para a criança. Viver a cidade do lado de fora é uma forma de perceber que a cidade a pertence. Elas crescem com esse desenvolvimento cognitivo e sensorial. E cria um afeto pela cidade. Isso tudo vai refletir na vida futura e na relação com o medo que as pessoas estabelecem com a cidade. Quando há contato maior com a cidade, principalmente no transporte, esse medo se torna menor”, alerta JP Amaral.
DIFICULDADES NA PRÁTICA
A dona de casa Sharly Clemente da Silva, moradora da Zona Oeste do Recife, enfrenta diariamente as dificuldades constatadas pelo estudo do ITDP. Sofre todos os dias para circular com os dois filhos pela cidade. Ir à escola ou ao médico é tarefa árdua. Um dos filhos de Sharly é uma pessoa com deficiência, o que torna o deslocamento ainda mais sacrificante. "Tenho que andar com cuidado redobrado. As calçadas são ruins, sempre tomadas por lixo ou obstruídas com galhos e outras coisas. Em muitos momentos temos que andar na rua mesmo, próximo ao acostamento, com risco de sermos atropelados. Não há acessibilidade. Faltam travessias seguras também. É preciso andar atento o tempo todo", relata.
As crianças e, principalmente, seus cuidadores são duplamente penalizados porque, além das dificuldades intrínsecas à autonomia de deslocamento natural, existe uma série de características dos sistemas de transportes que não consideram as necessidades de crianças em seu desenho, serviço e infraestrutura, principalmente nos primeiros anos de vida. É preciso rediscutir e desenhar o sistema tendo em mente as crianças e seus cuidadores. Isso significa pensar em como essa questão afeta todas as etapas de sua viagem - do trajeto até o ponto de embarque ao destino final - e, por consequência, todas as etapas de planejamento do sistema. Precisamos voltar a discutir e desenhar sistemas de transporte público voltados para as pessoas, em especial para as novas gerações”,Beatriz Rodrigues, do ITDP
Se chegar ao ponto de ônibus já é difícil, usar o transporte público também é uma provação. Embora tenha a vantagem de fazer uso do Sistema BRT pernambucano, com estações de embarque e desembarque em nível e rampas de acesso, Sharly e os filhos sofrem com a lotação dos veículos e a pouca empatia dos outros passageiros com as crianças. A ideia de ver os pontos de parada serem transformados em áreas lúdicas, que pudessem estimular o desenvolvimento dos pequenos, é vista como um sonho pela dona de casa. "Seria muito bom se essa ideia fosse ampliada pela cidade, pelo País. Ajudaria demais no deslocamento diário porque prenderia a atenção deles, ao mesmo tempo em que estariam aprendendo coisas novas", reconhece.
A IMPORTÂNCIA DO TRANSPORTE PÚBLICO
Histórias como a de Sharly e seus filhos se repetem nos deslocamentos diários de crianças e cuidadores, principalmente no transporte público. Por isso, Beatriz Rodrigues, coordenadora sênior de Transporte Público do ITDP Brasil, destaca que é fundamental a conexão entre o sistema de transporte público, em especial o de ônibus, com a primeira infância.
“As crianças e, principalmente, seus cuidadores são duplamente penalizados porque, além das dificuldades intrínsecas à autonomia de deslocamento natural, existe uma série de características dos sistemas de transportes que não consideram as necessidades de crianças em seu desenho, serviço e infraestrutura, principalmente nos primeiros anos de vida. É preciso rediscutir e desenhar o sistema tendo em mente as crianças e seus cuidadores. Isso significa pensar em como essa questão afeta todas as etapas de sua viagem - do trajeto até o ponto de embarque ao destino final - e, por consequência, todas as etapas de planejamento do sistema. Precisamos voltar a discutir e desenhar sistemas de transporte público voltados para as pessoas, em especial para as novas gerações”, alerta.
MOBILIDADE COMO CONSEQUÊNCIA
O arquiteto e urbanista Gustavo Partezani, consultor na área e colaborador do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) em projetos relacionados à primeira infância, vai além da problemática do transporte público. Para ele, antes mesmo de se pensar em qualificar os sistemas de transporte em benefício das crianças e de seus cuidadores, é preciso aproximar os equipamentos urbanos dos bairros. Na visão do arquiteto, a mobilidade tem que ser vista como consequência e, não, como causa.
“O deslocamento motorizado, por exemplo, deveria ser facultativo às crianças e seus cuidadores no dia a dia. O importante era que elas pudessem ter a escola, os equipamentos de saúde, a praça e o parque perto de casa, em distâncias caminháveis. Cuidar das calçadas e da segurança viária, então, seria fundamental. Porque se não for assim, a gente olha a consequência e, não, a causa. Há situações em que o motorizado será necessário, mas não pode ser como política pública. A mobilidade precisa ser vista como consequência, não como causa. A criança e seu cuidador fazem longos deslocamentos porque não têm a escola perto de casa. Precisamos mudar essa lógica”, defende.
OS PRINCIPAIS RESULTADOS DO ESTUDO
O estudo Primeiros passos: mobilidade urbana na primeira infância aponta ações e iniciativas capazes de transformar as infraestruturas de mobilidade existentes nas cidades e o planejamento do transporte público para que sejam mais sensíveis à primeira infância. Sob a ótica da mobilidade a pé, as recomendações são para adequação das calçadas, arborização das ruas, iluminação das vias e entorno das paradas de ônibus, além da implantação de travessias seguras para os pedestres. A partir do transporte público, as recomendações são para, além de priorizar o serviço nas ruas e avenidas das cidades - fazendo com que as viagens se tornem mais rápidas e confortáveis -, transformar a infraestrutura do mobiliário urbano em espaços lúdicos, que estimulem o desenvolvimento das crianças quando os utilizarem.