Responsável por condenar a Uber em R$ 1 milhão pela prática de dumping social, no final de setembro de 2021, o desembargador Marcelo Ferlin D’Ambroso, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), colocou mais lenha na fogueira que consome, aos poucos, a maior plataforma de transporte por aplicativo do mundo.
Desde o primeiro semestre deste ano, a big tech multinacional observa o número de reclamações por parte dos passageiros subir consideravelmente em todo o país. Isso tudo embalado pelos constantes atritos com motoristas, que já buscam alternativas não só à Uber, mas também às suas concorrentes.
Com a decisão de Marcelo D’Ambroso, o cenário para as plataformas em solo brasileiro ficou ainda mais difícil. Na mesmo período em que foi condenada no TRT-4, a gigante da tecnologia recebeu, ao menos, uma outra decisão desfavorável. À época, o TRT do Ceará determinou que a plataforma indenizasse em R$ 676 mil, por danos morais e materiais, a mãe de um motorista assassinado durante uma corrida pelo aplicativo.
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Além disso, a Uber e suas concorrentes tiveram de assistir inertes à declaração da presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, que defendem terem motoristas e entregadores o direitos mínimos e devem estar cobertos pela legislação trabalhista, com direito a aposentadoria e jornada de trabalho "compatível".
A relação entre as empresas e os motoristas é tema de discussões judiciais, que, majoritariamente, têm favorecido as plataformas. Ocorre, porém, que decisões recentes vêm adotando uma nova postura.
Em conversa com o JC, D’Ambroso afirmou que empresas como Uber e 99 precarizam a vida dos trabalhadores porque adotam “uma espécie de capitalismo selvagem”. Na avaliação do magistrado a relação entre as plataformas e os motoristas caracteriza um regime de “neoescravidão”, o que precisaria ser considerado crime no Brasil.
Contrário à regulamentação específica para o transporte por aplicativo, o desembargador que chegou ao cargo em 2013, após passagem pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), analisa durante a entrevista os impactos da tecnologia no mundo do trabalho e o papel do Judiciário na garantia dos direitos humanos.
Confira a entrevista completa:
Diferentes tribunais do país já aceitaram acusações de manipulação da jurisprudência contra plataformas de aplicativos, como Uber e 99. O senhor poderia de alguma forma explicar o que seria essa estratégia da qual são acusadas as plataformas? Seria o chamado "dumping social"?
A questão desses aplicativos é que eles precarizam muito a vida dos trabalhadores. Então as pessoas passam a ter remuneração exclusiva pelo tempo de produção, que é o chamado trabalho zero hora. Isto nada mais é que um modelo que foi produzido na Alemanha e Estados Unidos, com suas reformas neoliberais. Um modelo que pode ser visto como uma espécie de capitalismo selvagem. Se a pessoa adoece ou tem que fazer simplesmente uma pausa, porque somos seres humanos, ela simplesmente não recebe, porque não tem previdência social — ao menos que se recolha por si mesmo — não tem férias, décimo terceiro, não tem garantia nenhuma, não tem aviso prévio, caso venha a ser rescindida a relação de trabalho. Então são várias formas de precarização extrema, uma espécie de neoescravidão. Acaba que as pessoas trabalham sete dias por semana, 30 dias por mês, 12 meses por ano, enquanto o corpo aguenta. Isso sim nós podemos chamar de uma prática de dumping social.
Na sua avaliação, a ausência de regulação, sem regras claras quanto aos direitos trabalhistas, gera dano, não só aos trabalhadores, mas à sociedade como um todo?
Eu não penso que não exista regulamentação. Nós temos regulamentação, ela se chama Consolidação das Leis do Trabalho. Toda relação de trabalho deve se pautar pela CLT. Essa forma de organização de trabalho, que é mediada pelo algoritmo, pelos aplicativos, é uma novidade no mundo tecnológico, mas no plano regulamentar, não. Basta apenas aplicar o que já temos. Isto é o que eu tenho feito nas minhas decisões. Aplico a lei que determina o reconhecimento de vínculo empregatício. As pessoas cumprem ordens. Elas são dependentes economicamente, são subordinadas aos aplicativos e ao algoritmo. Elas não dominam, elas não têm informações de como é processado o preço das corridas, das entregas. Portanto, não há carência legislativa. O que há toda uma propaganda em cima disso como se fosse uma novidade, mas não é. Então, não vejo falta de regulamentação, e sim uma falta de aplicação dessas normas.
O senhor defende que já há normas para regulamentar o trabalho por aplicativo. No entanto, as empresas alegam o oposto. Aqui no Recife, por exemplo, há uma lei que não está valendo graças a uma ação judicial de uma das plataformas. Sem essa regulamentação, para além da CLT, o argumento de que não há dumping social não é fortalecido?
O dumping social, como eu disse, opera pela redução ilícita dos custos da atividade econômica, que no caso das plataformas, são praticamente todos terceirizados. A única coisa que não é terceirizada pelos aplicativos são os lucros. É aquela questão da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos. Então, a avaliação da qualidade dos serviços é feita pelos usuários, o algoritmo dá orientação de como prestar a corrida, do trajeto a ser percorrido. Ele dá todo o direcionamento, mas não paga nenhum direito social, como FGTS e descansos semanais remunerados.Todos os direitos fundamentais mais básicos são negados. Então, o dumping social não tem nada a ver com regulamentação. Porque mesmo com regulamentação, o aplicativo pode mascarar a relação de trabalho. Logo, são as novas tecnologias que têm que se adequar à Constituição, às leis e ao ordenamento jurídico, não o inverso. Senão, estaremos enxugando gelo, já que a tecnologia evolui de forma muito rápida.
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Recentemente, a presidente do Tribunal Superior do Trabalho, a ministra Maria Cristina Peduzzi, afirmou que profissionais autônomos ligados às plataformas, como Ifood, Uber e 99, têm direitos mínimos. Como podemos garantir esses direitos diante das violações que o senhor aponta?
Eu não acompanhei a declaração da ministra, mas o Direito do Trabalho opera sobre direitos mínimos, que estão na Constituição, especialmente no artigo 7º. Portanto, para garantirmos tais direitos, é necessário reconhecermos o vínculo empregatício [entre motoristas, entregadores e plataformas]. Temos que cumprir a CLT. Se não a cumprirmos, estaremos diante de um contexto de escravidão ou de trabalho em condições análogas a este tipo de trabalho.
O acervo de ações da Justiça do Trabalho é composto, em uma parte significativa, de violações de direitos sociais por parte de grandes litigantes. Se não houver uma definição clara das regras específicas para as plataformas, é possível vislumbrar um futuro no qual as empresas, de diversos setores da economia, adotarão esse modelo, digamos assim, 'uberizado' e daquilo que o senhor chamou de trabalho zero hora?
Eu insisto que já temos uma regulamentação para essa modalidade de trabalho, chama-se CLT.
Mas não há uma específica.
Não entendo que uma regulamentação específica pode ser mais vantajosa ao trabalhador, porque ela pode trazer graves retrocessos. Em Portugal, por exemplo, a legislação específica reconheceu os direitos trabalhistas, mas abriu espaço para que eles fossem terceirizados. A terceirização é sempre uma forma de precarização do trabalho. Então, se nós fizermos uma regulamentação específica, poderemos cair nesse engodo, nessa falácia, que é o objetivo desejado por esses mecanismos de engenharia informática, pelas plataformas, de ludibriar alguns direitos sociais. Então, se abrirmos mão para uma nova regulamentação, corremos o risco de ver a classe trabalhadora perder direitos conquistados em mais de um século de luta. Já temos muitas normativas, agora só precisamos fazer essas empresas cumprirem a regulamentação existente.
Esse modelo de negócios, que também se baseia em bônus por indicação, não poderia caracterizar um esquema de Ponzi ou pirâmide?
Me parece dar a pauta de pirâmide mesmo. Em algum lugar, no futuro, isso irá estourar. Acho que já houve sistemáticas de trabalho assim, que redundaram em pirâmide. Isso porque, à medida que uma pessoa vai indicando novos prestadores, ela acaba por não trabalhar mais e os outros trabalham para ela, o que precariza ainda mais, em um efeito cascata, a quem está na ponta rodando. Isso só agrava o problema dos trabalhadores e caracteriza ainda mais o dumping social, que precisa ser considerado crime.
Para o senhor, quando o Judiciário não reconhece a relação de trabalho entre motoristas e plataformas, há o ferimento dos Direitos Humanos? É possível sonharmos com os direitos trabalhistas incluídos neste rol?
Eu entendo que a falta de reconhecimento da relação de emprego, sim, viola os Direitos Humanos. Todos os direitos trabalhistas acabam ficando de lado. Penso que não necessitamos de novas regulamentações, mas abro espaço para defender que a única normativa que pertinente a adotar seria a tipificação como crime das práticas de dumping social, a fim de frear a exploração do trabalho alheio e garantir Direitos Humanos para os trabalhadores.
'Uma espécie de neoescravidão'
Confira os principais trechos da entrevista com o desembargador do Trabalho Marcelo D'Ambroso ao Jornal do Commercio
Diferentes tribunais do país já aceitaram acusações de manipulação da jurisprudência contra plataformas de aplicativos, como Uber e 99. O que é o chamado "dumping social"?
Esses aplicativos precarizam muito a vida dos trabalhadores. As pessoas passam a ter remuneração exclusiva pelo tempo de produção, que é o chamado trabalho zero hora. Isto nada mais é que um modelo que foi produzido na Alemanha e Estados Unidos, com suas reformas neoliberais. Um modelo que pode ser visto como uma espécie de capitalismo selvagem. Se a pessoa adoece ou tem que fazer uma pausa, porque somos seres humanos, ela simplesmente não recebe, porque não tem previdência social — ao menos que se recolha por si mesmo — não tem férias, décimo terceiro, não tem garantia nenhuma, não tem aviso prévio, caso venha a ser rescindida a relação de trabalho. Então são várias formas de precarização extrema, uma espécie de neoescravidão. Acaba que as pessoas trabalham sete dias por semana, 30 dias por mês, 12 meses por ano, enquanto o corpo aguenta. Isso, nós podemos chamar de dumping social.
Na sua avaliação, a ausência de regulação, sem regras claras quanto aos direitos trabalhistas, gera dano, não só aos trabalhadores, mas à sociedade como um todo?
Nós temos regulamentação, ela se chama Consolidação das Leis do Trabalho. Toda relação de trabalho deve se pautar pela CLT. Essa forma de organização de trabalho, que é mediada pelo algoritmo, pelos aplicativos, é uma novidade no mundo tecnológico, mas no plano regulamentar, não. Basta apenas aplicar o que já temos. Isto é o que eu tenho feito nas minhas decisões. Aplico a lei que determina o reconhecimento de vínculo empregatício. As pessoas cumprem ordens. Elas são dependentes economicamente, são subordinadas aos aplicativos. Elas não dominam, elas não têm informações de como é processado o preço das corridas, das entregas. Portanto, não há carência legislativa. O que há toda uma propaganda em cima disso como se fosse uma novidade, mas não é.
O senhor defende que já há normas para regulamentar o trabalho por aplicativo. No entanto, as empresas alegam o oposto. Aqui no Recife, por exemplo, há uma lei que não está valendo graças a uma ação judicial de uma das plataformas. Sem isso, o argumento de que não há dumping social não é fortalecido?
O dumping social opera pela redução ilícita dos custos da atividade econômica, que no caso das plataformas, são praticamente todos terceirizados. A única coisa que não é terceirizada pelos aplicativos são os lucros. É aquela questão da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos. A avaliação da qualidade dos serviços é feita pelos usuários, o algoritmo dá orientação de como prestar a corrida, do trajeto a ser percorrido. Ele dá todo o direcionamento, mas não paga nenhum direito social, como FGTS e descansos semanais remunerados. Os direitos fundamentais mais básicos são negados. O dumping social não tem nada a ver com regulamentação. Porque mesmo com ela, o aplicativo pode mascarar a relação de trabalho. Logo, são as novas tecnologias que têm que se adequar à Constituição e ao ordenamento jurídico, não o inverso.
Recentemente, a presidente do Tribunal Superior do Trabalho, a ministra Maria Cristina Peduzzi, afirmou que profissionais autônomos ligados às plataformas, como Ifood, Uber e 99, têm direitos mínimos. Como podemos garantir esses direitos?
Eu não acompanhei a declaração da ministra, mas o Direito do Trabalho opera sobre direitos mínimos, que estão na Constituição, especialmente no artigo 7º. Portanto, para garantirmos tais direitos, é necessário reconhecermos o vínculo empregatício (entre motoristas e plaraformas). Temos que cumprir a CLT. Se não, estaremos diante de um trabalho em condições análogas a escravidão.
O acervo de ações da Justiça do Trabalho é composto, em uma parte significativa, de violações de direitos sociais por parte de grandes litigantes. Se não houver uma definição clara das regras específicas para as plataformas, é possível vislumbrar um futuro no qual as empresas adotarão esse modelo "uberizado"?
Eu insisto que já temos uma regulamentação para essa modalidade de trabalho, chama-se CLT. Não entendo que uma regulamentação específica pode ser mais vantajosa ao trabalhador, porque ela pode trazer graves retrocessos. Em Portugal, por exemplo, a legislação específica reconheceu os direitos trabalhistas, mas abriu espaço para que eles fossem terceirizados. A terceirização é sempre uma forma de precarização do trabalho. Então, poderemos cair nesse engodo, nessa falácia, que é o objetivo desejado por esses mecanismos de engenharia informática, pelas plataformas, de ludibriar alguns direitos sociais. Se abrirmos mão para uma nova regulamentação, corremos o risco de ver a classe trabalhadora perder direitos conquistados em mais de um século de luta. Já temos muitas normativas, agora só precisamos fazer essas empresas cumprirem.
Esse modelo de negócios, que também se baseia em bônus por indicação, não poderia caracterizar um esquema de Ponzi ou pirâmide?
Me parece dar a pauta de pirâmide mesmo. Em algum lugar, no futuro, isso irá estourar. Acho que já houve sistemáticas de trabalho assim, que redundaram em pirâmide. Isso porque, à medida que uma pessoa vai indicando novos prestadores, ela acaba por não trabalhar mais e os outros trabalham para ela, o que precariza ainda mais, em um efeito cascata, a quem está na ponta rodando. Isso só agrava o problema dos trabalhadores e caracteriza ainda mais o dumping social, que precisa ser considerado crime.
Quando o Judiciário não reconhece a relação de trabalho entre motoristas e plataformas, há o ferimento dos Direitos Humanos?
A falta de reconhecimento da relação de emprego, sim, viola os Direitos Humanos. Todos os direitos trabalhistas acabam ficando de lado. Penso que não necessitamos de novas regulamentações, mas abro espaço para defender que a única normativa que pertinente a adotar seria a tipificação como crime das práticas de dumping social, a fim de frear a exploração do trabalho alheio.
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