Na memória de Laiza Ramos, o Largo do Holandês sempre esteve presente. O espaço, situado entre as ruas Samuel Lins com a Flor de Santana, em Casa Forte, na Zona Norte do Recife, onde as casas ainda predominam na paisagem contra os edifícios, foi o único ambiente de lazer que teve desde a infância, e que hoje é usado pelos seus filhos; mas ela teme perdê-lo em breve. Isso porque a população da área foi surpreendida no último mês pela construção de uma capela no Largo, que foi recentemente revitalizado pela gestão Geraldo Julio (PSB), há três anos, a partir de pressão popular, para convivência dos moradores.
Segundo a população, as obras, que custam R$ 503 mil e são financiadas pela Caixa Econômica Federal, chegaram sem aviso. “Quando criança, eu brincava muito aqui, sempre com a promessa de que haveria uma praça para a gente. Meus filhos participaram da construção do Largo, plantaram mudas, mas recebemos com surpresa [a notícia] de que teria a construção da capela aqui. Para a gente foi frustrante. Em nenhum momento fomos comunicados ou ouvidos, simplesmente fizeram a licitação e está assim. Fomos, inclusive, coagidos, tivemos que tirar os carros. Não tem lazer aqui perto, o bairro também precisa dessas áreas de convivência”, defendeu Laiza.
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Apesar do sonho da comunidade em ter uma praça planejada e com equipamentos no local nunca ter se concretizado, Leonardo Andrade explicou que o Largo do Holandês já era utilizado e cuidado pelos moradores. “Esse espaço sempre foi esquecido pelo poder público. Fomos nós quem plantamos as árvores, orientamos para não jogarem lixo, montamos um bicicletário. Já cuidamos dele há bastante tempo, então [a construção] não poderia ter sido feita dessa forma”. O comerciante mostrou à reportagem que o seu portão de acesso à garagem foi, inclusive, fechado por tapumes da construção, "desvalorizando o imóvel".A Capela Lemos Torres, que tem previsão de entrega para 30 de abril de 2022, é erguida no Largo do Holandês como forma de compensar a derrubada de uma outra instituição católica antes presente na Rua Lemos Torres. A antiga capela precisou ser demolida para que o conjunto habitacional Padre José Edwaldo Gomes, que abriga moradores de antiga comunidade desde 2019, fosse construído.
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Mesmo sendo beneficiado por ela, um grupo de moradores do habitacional ouvidos pela reportagem também não entendeu o porquê da capela ser construída no Largo e não próxima aos blocos. “A gente tem necessidade de ter uma igreja desde que houve a demolição, mas o projeto era que ficasse próxima a um dos blocos. Eu não aceito [a localização] porque sei que muitos idosos não vão conseguir se locomover até ela”, disse Janderson André Santana, de 35 anos, que mora na Lemos Torres desde que nasceu.
Nos tapumes instalados para cercar as obras, foram pichadas as perguntas “Interesse de quem?” e “3 igrejas em 1 quilômetro?” - já que, a poucas ruas do Largo, estão localizadas a Matriz de Casa Forte e a Igreja da Harmonia. Consultada pela reportagem, a Igreja não quis se pronunciar sobre a polêmica. Uma comissão formada por moradores da área pediu à Prefeitura do Recife o projeto da capela e uma reunião para discutir o assunto, mas disse não ter obtido resposta. Um abaixo assinado encabeçado pela comunidade já reúne cerca de 100 assinaturas cobrando explicações sobre as obras.
A arquiteta e urbanista da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Circe Monteiro defende que Largo seria “um bom espaço público, até um playground, porque o habitacional tem espaços pequenos e restritos, muito pequenos para a população dele” e que uma cidade precisa ser planejada a partir da escuta da população - um processo que não houve para a construção da capela.
“Nos Estados Unidos, há uma lei que obriga das prefeituras a marcarem no mapa os terrenos que tiveram pedido de licenciamento desde o primeiro momento, então quem estiver em volta está sabendo e pode pedir informação. Na Austrália, para fazer qualquer modificação no espaço público é preciso avisar e pedir a opinião para a população que morava em um raio de 500 metros. Mas aqui temos prefeituras que não negociam. Isso é desconsiderar completamente o interesse dos moradores.”
Justificativa
Por nota, a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) afirmou que a “capela é uma construção de pequeno porte, que tem as licenças ambientais necessárias (concedidas pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife) e se destina a uso pelos moradores do habitacional”, e que, nos próximos dias, “realizará uma reunião com os moradores da área para consolidar um processo de diálogo e apresentar o projeto do conjunto completo de intervenções, incluindo a capela e as ações de urbanização.” Ainda de acordo com a URB, o terreno do Largo do Holandês pertence ao município e "outros espaços chegaram a ser analisados, mas se mostraram inviáveis para construção".