ENTENDA

A polêmica que ronda a revitalização das calçadas do Recife nos últimos tempos

Projeto Calçada Legal, da Prefeitura do Recife, chega sem aviso aos moradores e foca ações em áreas nobres da cidade. Polêmica levanta a dúvida: de quem é a responsabilidade dos passeios?

Cadastrado por

Katarina Moraes

Publicado em 18/04/2021 às 8:00
Projeto Calçada Legal no Pátio de Santa Cruz, na Boa Vista, no Centro do Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

A confusa legislação sobre a responsabilidade das calçadas, falta de comunicação com a população e obras que privilegiam áreas centrais e nobres foi a receita para gerar mais uma polêmica na capital pernambucana. Nas últimas semanas, moradores da Rua Simão Mendes, no bairro da Tamarineira, na Zona Norte, foram surpreendidos com a retirada e posterior substituição dos pavimentos destinados aos pedestres em uma área que parecia não sentir a necessidade da obra. A intervenção custou mais de R$ 195 mil aos cofres federais e foi feita por meio do projeto Calçada Legal, da Prefeitura do Recife.

“As calçadas estavam transitáveis, sem nenhum tipo de buraco. Estava normal. O que me surpreende são as prioridades [da gestão]. A gente vê uma série de morros com lonas rasgadas, sem muro de arrimo, e a prefeitura decide gastar 195 mil reais em uma área nobre da cidade, onde os proprietários têm condições de consertar as calçadas, se for o caso. Ficamos nos perguntando o porquê disso”, questionou o analista de sistemas Ricardo Scholz, residente da rua.

O empresário Rafael Brasil passa pela rua diariamente com a esposa e com o filho. Ele também não considera que as calçadas, também chamadas de passeios, precisavam ser revitalizadas. “Eles estão trocando pelo mesmo tipo de material. A calçada já estava toda pronta, toda bonita, sem nenhum defeito”, lembra. O médico Amaro Gusmão denunciou a falta de critério na hora de gastar o dinheiro público. “É um gasto desnecessário sob o critério de seguir um padrão, para que as calçadas sejam absolutamente iguais. Isso não tem sentido”, avaliou.

Por outro lado, João Batista, diretor de engenharia e obras da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), órgão responsável pelo projeto, argumentou que as calçadas da Rua Simão Mendes precisavam sim de reparos. “É importante dizer que a calçada tinha problemas de abatimento em alguns pontos. Uma outra questão é que [a intervenção no] passeio necessitava ser feita por conta da inclinação que existia e que a gente constatou que estava fora de norma. Foi um passeio feito entre 7 e 10 anos pela construtora do próprio prédio, e estamos garantindo que tenhamos uniformidade em toda a via que estamos tratando”, explicou.

CENTRO Na Rua da Aurora, pedras portuguesas estão sendo substituídas por pedras mineiras e tijolos - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Requalificação das calçadas de Campo Grande, Zona Norte do Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Projeto Calçada Legal no Pátio de Santa Cruz, na Boa Vista, no Centro do Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Requalificação das calçadas da Rua da Aurora, Centro do Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

No local, é feita a requalificação de 420m de passeio da via em tijolo intertravado, com aplicação de soluções de acessibilidade, como rampas e instalação de pisos táteis, segundo a URB, com o intuito de enquadrar as calçadas dentro das normas de construção exigidas. A pasta também garantiu que o síndico do prédio residencial que fica em frente à parte inclinada fez questão de formalizar via documento um pedido para que a Autarquia realizasse o reparo. A obra tem previsão para ser finalizada até o final de abril deste ano.

A arquiteta e urbanista Circe Monteiro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pontua que é real a urgência do cuidado com as calçadas do Recife, mas avalia que a gestão falhou ao não comunicar os moradores sobre a obra. “É necessário que o urbanismo seja um produto discutido com a população. Se fala em cidade sustentável, mas só vamos tê-la se as pessoas estiverem engajadas nesse sistema. A calçada vai precisar de manutenção, de limpeza, de quem cuide da vegetação. Se os moradores em volta não estão satisfeitos com a proposta, a solução também não deve funcionar”, avalia.

Foco do Calçada Legal

O grande embate contra as obras são pelos locais escolhidos para recebê-las, em áreas nobres ou centrais. Além da Tamarineira, o Calçada Legal também revitaliza, atualmente, os passeios das ruas José de Alencar, Manoel Borba e Leão Coroado (Boa Vista), Rua Vinte de Janeiro (Boa Viagem), Rua da Aurora, Conselheiro Portela (Espinheiro), Simão Mendes (Tamarineira), Largo da Encruzilhada e Pátio da Igreja de Santa Cruz (Boa Vista). Mas, ao todo, um total de 45 km de calçadas já foi contemplado, segundo a Prefeitura do Recife. O plano prevê o investimento de R$ 105 milhões, provenientes do governo federal, que serão utilizados na requalificação de 134 km de calçadas e 25.472,62 m² de largos da cidade.

A execução do Calçada Legal na Rua da Aurora, Centro do Recife, também foi criticada nas redes sociais. Imagens das centenas de pedras portuguesas que compunham a paisagem do logradouro que é cartão postal da cidade assustaram a população. “Prefeitura do Recife ‘requalificando’ a Rua da Aurora e trocando as pedras portuguesas por tijolos? Sério isso?”, questionou um internauta. Lá, 3,5 mil metros de calçadas estão sendo requalificadas, além de 800 metros de canteiros centrais da via, com um aporte financeiro de R$ 4,4 milhões e previsão de término do serviço para dezembro de 2021.

As obras incluem a instalação de novos passeios em pedra mineira e tijolo intertravado, pisos táteis e rampas de acessibilidade no trecho entre as pontes do Limoeiro e Princesa Isabel. Tudo isso, segundo a gestão, por “questões de acessibilidade, uma vez que, ao contrário da pedra portuguesa, a pedra mineira tem uma face plana, facilitando a locomoção das pessoas com limitação de mobilidade”. Para a arquiteta Circe, esse é um motivo equivocado. “O problema é a manutenção. Os centros de Lisboa e Roma são todos de pedra portuguesa, que está lá há milênios. Quando ela é bem mantida, facilita muito mais o deslocamento de cadeirantes do que qualquer outra”, garante.

A Prefeitura promete que todos os tijolos e pedras retiradas em bom estado de conservação estão sendo encaminhados para a Emlurb e serão posteriormente utilizados nos serviços de manutenção pública da cidade. Além disso, disse estar prevista a a requalificação das calçadas de mais 34 vias da cidade, entre elas as avenidas Visconde Suassuna, Antônio Torres Galvão e Santos Dumont, além das ruas Fernandes vieira, Dom Bosco, Doutor José Maria, Benfica e Largo de Afogados.

Alternativa para mobilidade

A importância de pensar as calçadas se dá na realidade de que, em algum momento na mobilidade urbana, todos são pedestres. Seja descendo dos carros para atravessar a rua, ou indo até o ponto de ônibus, como trouxe o especial Pelo Caminhar, feito por Roberta Soares, no JC. No Recife, mais de 70% da população usa transporte público ou se locomove a pé para casa, trabalho, escola ou faculdade, segundo dados do executivo municipal. 

Durante a pandemia da covid-19, a organização Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo (Rede BR) fez um levantamento que concluiu que a preferência por essa forma de deslocamento subiu de 9% para 23% em todo o país, por causa das medidas de isolamento social. Mesmo assim, até hoje, tal sistema de mobilidade ativa ainda luta pelo reconhecimento. 

“As calçadas são ambientes definidores da vitalidade urbana de uma área, pois se estão movimentadas, criarão atratividade para aquele local, estimulando assim o tráfego, em especial por modos ativos (como o caminhar e a bicicleta), fundamentais para a mobilidade sustentável. Dessa forma, esse espaço requer uma especial atenção quanto a sua qualidade de execução, segurança e conforto, a fim de evitar acidentes, ampliar a segurança e a acessibilidade. Uma cidade com boas calçadas, travessias e, enfim, bom espaço para o caminhar, é um lugar para todos viverem e se locomoverem melhor”, defende Nathália.

Para o reparo dos passeios públicos, a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb), diz gastar, em média, R$ 2 milhões por ano.

De quem são as calçadas?

O burburinho em torno do Calçada Legal levantou novamente a antiga dúvida sobre de quem é a responsabilidade de cuidar das calçadas da cidade. A Constituição Federal define que fica a cargo dos municípios definirem suas próprias regras, e que estes possuem liberdade sobre como desejam construí-las e mantê-las. No Recife, essa regulamentação é feita através da lei municipal 16.292/97.

O texto traz que o poder público só é responsável pelas calçadas das:

A construção e manutenção, nos demais casos, como na frente de casas e apartamentos, cabem ao proprietário ou ocupante do imóvel. Caso esteja em más condições e não seja feita, o poder público pode notificar e dar um prazo de 90 dias para a recuperação.

Ainda, a legislação define alguns requisitos para a construção de passeios: devem ser paralelos ao grade do logradouro projetado; devem ter uma inclinação, do alinhamento para o meio-fio, de 2% e a pavimentação deverá ser executada em materiais antiderrapantes. Além disso, traz que a Prefeitura poderá fixar, para cada logradouro ou trecho, a juízo do órgão técnico competente, o tipo de pavimentação do passeio, e que não é permitido obstáculo permanente que impeça o livre trânsito dos pedestres.

Integrante do coletivo recifense Bora Dados e Mobilidade, a arquiteta Nathália Machado afirma que os passeios serem pensados por cada lote e por cada proprietário resulta na negligência e em uma “caminhabilidade inexistente, acessibilidade sofrível e uma cidade que expulsa os caminhantes das calçadas”. “As calçadas deveriam receber investimento específico e serem de responsabilidade de um setor público que pudesse tratá-las como um sistema de mobilidade conectando toda a cidade, que é o que elas são.”

O advogado de direito imobiliário Marcelo Carvalho expõe que não vê nada de errado, legalmente falando, na Prefeitura do Recife reformar as calçadas da cidade. "Se houver o interesse público, a prefeitura pode tomar a iniciativa de reformar as calçadas, desde que seja devidamente justificado", disse. O que é de se estranhar, apenas é "uma iniciativa pública de consertar calçadas por contra própria, em bairros nobres, por exemplo, priorizando estas vias, quando outras espalhadas pelo município poderiam ser escolhidas anteriormente."

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